Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

10 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


Não mais uma crise de regime, mas um
problema de liderança.
Ao apagar a natureza estrutural dos
antagonismos sociais, o discurso so-
bre a casta e o povo – duas entidades
de contornos mal definidos – assume
a aparência de uma luta moral entre o
bem e o mal, os puros e os corruptos.
Ao menor suposto defeito moral, ao
menor sinal de impureza, ele se volta
contra seus promotores. Os adversários
de Iglesias e a imprensa falaram durante
semanas sobre sua aquisição, por meio
de um empréstimo que duraria várias
décadas, de uma casa de 600 mil euros
em um bairro residencial de classe mé-
dia alta em Madri.
A leve recuperação da economia es-
panhola em 2015 enfraqueceu o discur-
so contra a austeridade do Podemos. Por
sua vez, a ascensão do partido liberal
Ciudadanos, às vezes chamado de “Po-
demos de direita”^14 (embora tenha sido
fundado em 2006), abalou a estratégia do
jovem partido. “Desenvolver o Ciudada-
nos foi uma jogada muito inteligente por
parte do sistema, principalmente porque
o Ciudadanos conseguiu ocupar na mí-
dia nossa posição de alternativa de reno-
vação. Havia outro partido da ‘mudança’.
[...] Isso nos normalizou e não aparece-
mos mais como outsiders”, admite Igle-
sias.^15 “Se você diz que o verdadeiro con-
flito está entre o velho e o novo, basta o
sistema inventar algo novo para você de-
saparecer”, resume Monedero. Isso sem
falar que a chegada do Ciudadanos colo-
cou o Podemos de volta ao eixo esquer-
da-direita, do qual ele queria escapar.
Após dezessete meses de corrida elei-
toral frenética, a lista do Podemos lidera-
da por Iglesias, à qual se uniram peque-
nas formações ecologistas e regionais de
esquerda, obteve 20,66% dos votos nas
eleições gerais de 20 de dezembro de



  1. Eles se traduziram em 69 cadeiras
    no Congresso dos Deputados – que tem

  2. O PP e o Psoe tiveram os piores resul-
    tados de sua história, mas ficaram com o
    primeiro e o segundo lugar. “Os resulta-
    dos foram muito mal recebidos dentro do
    Podemos”, conta Amírola. “Pensamos que
    seríamos a força majoritária; não tínha-
    mos nenhum plano do que fazer depois,
    não tínhamos pensado nisso, estávamos
    totalmente absorvidos pela campanha.”
    Uma nova página se abriu para o
    partido, que tinha de repensar sua orga-
    nização e sua estratégia. A ausência de
    uma maioria clara e a escolha do socia-
    lista Pedro Sánchez para forjar um pacto
    minoritário com os centristas liberais do
    Ciudadanos precipitaram a organização
    de novas eleições gerais em junho de

  3. O Podemos formou uma coalizão
    com a Izquierda Unida (esquerda radi-
    cal), sob o nome de Unidos Podemos,
    destinada a vencer as eleições seguintes.
    A aliança ancorava definitivamente o
    partido à esquerda, pondo fim à estraté-
    gia populista de indeterminação, e mar-
    cou o retorno da “sopa de siglas”.


Os debates internos desencadeados
por essa aliança mesclaram-se às dis-
sensões que vinham à tona havia meses,
após os resultados pouco empolgantes
das eleições de dezembro de 2015, entre
Iglesias e Errejón, sobre as orientações
estratégicas a serem postas em prática
para construir uma maioria social nas
urnas. Transmitidos pela mídia, que se
deleitava com esse duelo fratricida, os
confrontos deterioraram a imagem de
um partido que desnudava as batalhas
de egos e as lutas pelo poder.

No entanto, essas dissensões inter-
nas tinham um objeto real: “A grande
questão”, resume Iglesias, “é saber se
devemos permanecer populistas ou
não”,^16 o que se revelou tanto um de-
bate de estratégia política como uma
discussão ideológica de fundo. Iglesias,
por iniciativa dessa aliança marcada à
esquerda com a Izquierda Unida, mais
alinhada com uma filiação marxista, de-
fendeu um discurso de oposição radical
à oligarquia e a ideia de um Podemos
profundamente enraizado nas lutas so-
ciais e nos movimentos sociais, exortan-
do os militantes a “cavar trincheiras na
sociedade civil”^17 para formar um novo
“bloco histórico”. Já Errejón, discípu-
lo de Mouffe e Laclau, considerava ser
necessário aprofundar a estratégia po-
pulista, elaborando um projeto político
transversal capaz de conquistar a maio-
ria dos cidadãos. Era preciso, acreditava,
ir “em busca dos que faltam” e evitar “fe-
char-se sobre identidades do passado”,^18
o que a aliança com a Izquierda Unida
poderia representar.
Tratava-se então de assumir um
posicionamento à esquerda, procuran-
do distanciar-se da “velha esquerda”
radical para seduzir os eleitores mais
centristas, tradicionalmente ligados ao
Psoe. Apresentando o novo programa do
partido no início de junho de 2016, Igle-
sias se declarava como o líder da “nova
social-democracia”, invocando o traba-
lho dos economistas Vicenç Navarro –
próximo à ala esquerda do Psoe e que,
por um tempo, aconselhou Hillary Clin-
ton –, Thomas Piketty, Yanis Varoufakis
e James Galbraith, em que se baseava o
capítulo econômico daquele programa.
Ele afirma sentir-se “à vontade no espa-
ço da social-democracia [...], que permi-
te defender maiorias sociais contra uma
minoria privilegiada”. Esse novo posicio-
namento irritou o ex-primeiro-ministro
José Luis Zapatero, que o considerou
uma grosseira tentativa de usurpação

de identidade e captação de legado: “É
muito bom que todos queiram ser so-
ciais-democratas, mas a social-demo-
cracia é o Psoe”.^19 Com 13,42% dos votos,
o Unidos Podemos continuou muito
atrás do Psoe (22,63%) e do PP (33%).

O PESO DAS DISSENSÕES INTERNAS
A crise catalã de outubro de 2017 reve-
lou as falhas da estratégia da “falta de
contornos”. Em um referendo organiza-
do pelo governo catalão, e declarado ile-
gal pelo Estado espanhol, a população
da região pronunciou-se a favor de sua
autonomia, levando a uma crise polí-
tica nacional que ocupou por meses o
coração da agenda político-midiática.
O Podemos penou para sustentar sua
posição “equidistante”, com o partido
apoiando um referendo oficial, no qual
defenderia o “não” à independência.
Enquanto em 2014 defendia uma Es-
panha plurinacional, o que lhe rendeu
alguns de seus melhores resultados na
Catalunha, no País Basco e na Galiza,
depois ele se mostrou mais evasivo na
questão, de modo a não ofender nin-
guém em nível nacional. “O partido per-
cebeu que a cada vez que se posicionava
pela Catalunha, pelos presos ou contra a
repressão, perdia votos. Então optou por
não falar sobre a Catalunha, esperando
tudo passar”, o que causou a perda de
apoio na região, sem no entanto criar
uma tranquilidade a respeito da questão
catalã em nível nacional, explica Maria
Corrales, porta-voz do En Comú Podem
[ Juntos, Nós Podemos], a coalizão for-
mada pelo Podemos na Catalunha.
Tendo abandonado reivindicações
como a da reestruturação da dívida ou
a da nacionalização de setores estraté-
gicos da economia para promover uma
forma de social-democracia compatível
com o modelo econômico vigente, o Po-
demos – que quatro anos antes afirmava
ter a missão de extirpar o Psoe – viu-se
diante da questão de sua participação
no governo de Sánchez. “Um governo de
coalizão progressista” será “a melhor va-
cina contra a extrema direita”^20 em uma
Espanha e uma Europa feridas pela crise
e pelas políticas de austeridade, explica-
va Iglesias em 30 de dezembro de 2019.
Em janeiro de 2019, as dissensões
estratégicas e ideológicas dentro do
partido se tornaram grandes demais,
levando Errejón, inicialmente chefe da
lista do Podemos em Madri, a declarar
sua candidatura para as eleições regio-
nais sob as cores do Más Madrid, plata-
forma que acabava de criar, enquanto
Iglesias anunciou que o Podemos apre-
sentaria uma candidatura para se opor
a seu ex-número 2. Um ano depois, em
fevereiro de 2020, foi a vez de os Anti-
capitalistas anunciarem sua saída do
Podemos, na sequência da participa-
ção do Unidos Podemos no governo de
coalizão de Sánchez. Após uma grande
derrota, em 4 de maio de 2021, nas elei-
ções regionais de Madri, nas quais se

candidatou para tentar impedir o PP e
a Vox de governar a região, foi a vez de
Iglesias renunciar a todas as suas fun-
ções no partido. Desde então, ele segue
sua atividade política onde a considera
mais eficaz, o “jornalismo crítico” em
diferentes meios de comunicação ra-
diofônicos, televisivos e impressos.
A participação do Unidos Podemos
no governo Sánchez traduziu-se no au-
mento do salário mínimo em 22%, no
controle dos aluguéis e na indexação da
aposentadoria à inflação. A mesa foi vi-
rada? “Todas essas medidas não abolem
o capitalismo, nem o patriarcado, nem o
colonialismo”, admite Monedero. “Mas
são claramente avanços que melhoram
a vida de milhões de pessoas.”

*Maëlle Mariette é jornalista.

1 Ler Raúl Guillén, “Alchimistes de la Puerta del
Sol” [Alquimistas da Puerta del Sol], Le Mon-
de Diplomatique, jul. 2011.
2 In Política, manual de instrucciones [Política,
manual de instruções], filme de Fernando
León de Aranoa, 2016.
3 Ler Razmig Keucheyan e Renaud Lambert,
“Ernesto Laclau, inspirateur de Podemos” [Er-
nesto Laclau, inspirador do Podemos], Le
Monde Diplomatique, set. 2015.
4 Perry Anderson, “The only starting-point for a
realistic left today is a lucid registration of his-
torical defeat” [O único ponto de partida para
uma esquerda realista hoje é um registro lúci-
do da derrota histórica], “Renewals”, New
Left Review, n.1, Londres, jan.-fev. 2000.
5 Pablo Iglesias, “Understanding Podemos”
[Para entender o Podemos], New Left Review,
n.93, Londres, maio-jun. 2015.
6 “Militar en los medios de comunicación” [A
militância nos meios de comunicação], pro-
grama L a Tuerka, Tele K, Madri, 24 out. 2012.
7 “La crisis del régimen” [A crise do regime], La
Tuerka, 21 fev. 2013.
8 Ana Domínguez e Luis Giménez, Podemos,
sûr que nous pouvons! [Podemos, claro
que podemos!], Indigènes Éditions, Mon-
tpellier, 2015.
9 “Política, manual de instrucciones”, op. cit.
10 “Jorge Lago: ‘Ninguna de las reivindicaciones
se ha cumplido’” [Jorge Lago: “Nenhuma das
reivindicações se cumpriu], ABC, Madri, 15
maio 2021.
11 Íñigo Errejón, Con todo: De los años veloces
al futuro [Com tudo: dos anos velozes ao futu-
ro], Planeta, Barcelona, 2021.
12 “Podemos rectifica y ya no pide una reestruc-
turación de la deuda pública de España” [Po-
demos se corrige e não pede mais reestrutu-
ração da dívida pública da Espanha],
Expansión, Madri, 14 jul. 2015.
13 “Política, manual de instrucciones”, op. cit.
14 “Josep Oliu propone crear ‘una especie de
Podemos de derechas’” [Josep Oliu propõe
criar “uma espécie de Podemos de direita”],
El Periódico, Barcelona, 25 jun. 2014.
15 “Understanding Podemos”, op. cit.
16 “Iglesias cree que Podemos tiene que deci-
dir ‘si seguir siendo populista o no’” [Iglesias
acredita aquele Podemos deve decidir “se
segue sendo populista ou não”], El País, Ma-
dri, 5 out. 2016.
17 “Oposición transversal o el Podemos que ne-
cesitamos” [Oposição transversal ou o Pode-
mos de que precisamos], Público, Barcelona,
21 nov. 2016.
18 “Podemos ganar” [Podemos ganhar], 20 mi-
nutos, Madri, 28 nov. 2016.
19 “Sánchez elogia el legado de González y
Zapatero: ‘Son los mejores y del PSOE’”
[Sánchez elogia o legado de González e Za-
patero: “São os melhores e do Psoe”], EFE,
Madri, 17 jun. 2016.
20 “Iglesias: ‘Será el gobierno del sí se puede
y la vacuna contra extrema derecha’ ” [Igle-
sias: “Será o governo do sim, podemos, e a
vacina contra a extrema direita”], EFE, Ma-
dri, 30 dez. 2019.

Iglesias defendeu um
discurso de oposição
radical à oligarquia e a
ideia de um Podemos
profundamente enraiza-
do nas lutas sociais
Free download pdf