Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 11


O estranho desaparecimento


do Partido Comunista Italiano


Com quase 3 milhões de filiados, o Partido Comunista Italiano foi durante muito tempo a formação comunista mais
poderosa da Europa Ocidental. A organização de Antonio Gramsci e dos partisans provocava calafrios nos Estados
Unidos. O PCI, no entanto, deixou de existir em abril de 1991, levando com ele toda uma identidade política

POR ANTOINE SCHWARTZ*

NO ESPECTRO DO CONFORMISMO


S


e o esquerdismo é a doença in-
fantil do comunismo, o confor-
mismo é a de sua maturidade. De
que outra forma explicar o estra-
nho desaparecimento do mais podero-
so Partido Comunista ocidental, em
um belo dia de fevereiro de 1991? Com
efeito, durante o congresso final, após
setenta anos de existência, o Partido
Comunista Italiano (PCI), de Antonio
Gramsci e dos gloriosos partisans, re-
nunciou ao seu nome, com sua identi-
dade e história, para se dissolver – à
custa de algumas lágrimas, mas por
sua própria vontade.
Para compreender a magnitude
desse evento, precisamos voltar atrás,
até a Segunda Guerra Mundial. A es-
querda italiana representava, naquele
momento, como observa o historiador
Perry Anderson, “o movimento popular
mais importante e impressionante pela
mudança social na Europa ocidental”.^1
Na Libertação, Palmiro Togliatti, assu-
mindo as rédeas da organização, aban-
donou todas as inclinações revolucio-
nárias em favor da unidade nacional e
do projeto de alcançar uma nova de-
mocracia, que permitiria à classe tra-
balhadora desempenhar um papel po-
lítico e obter avanços econômicos e
sociais significativos. O PCI tornou-se,
então, um modelo de “partido de mas-
sas”, caracterizado por um enraiza-
mento popular excepcional (“uma se-
ção para cada sino”) e uma inf luência
intelectual e cultural fabulosa.
Esse poder todo assustou os deten-
tores da ordem: “Desde o início do con-
fronto Leste-Oeste em 1947, estava claro
que os Estados Unidos não permitiriam
que os comunistas chegassem ao poder
na Itália, em nenhuma circunstância”,^2
observa o historiador Eric Hobsbawm.
Segunda força eleitoral do país, a orga-
nização permaneceu às portas do gover-
no em um sistema dominado pela de-
mocracia cristã, que controlava todas as
ramificações do Estado ao impor lógicas
clientelistas – leia-se mafiosas.
A partir do fim da década de 1960,
uma mobilização endêmica abalou a
Itália e afetou todos os setores da so-
ciedade. Sua peculiaridade residia na

rota foi retumbante. O ano de 1984 foi um
ponto de inflexão – ou, em retrospectiva,
uma espécie de apogeu –, simbolizado
pelas imagens do funeral de Berlinguer,
acompanhado por uma multidão profun-
damente emocionada, que o homenagea-
va como se fosse um ente querido.
Eram tempos de mudança, e o pró-
prio partido evoluía, sem estardalhaço.
Dentro do aparelho, operava uma reno-
vação de quadros. A geração de apoia-
dores se esvaía e, com ela, a memória
do partido. Diferentes perfis, mais dis-
tantes do mundo do trabalho, tiveram
acesso às instâncias de direção: a orga-
nização passou a se apoiar nos municí-
pios e sua cultura gerencial de valoriza-
ção de profissionais da política. A visão
de um partido “abrangente”, capaz de
falar com todas as classes, cresceu.^5 No
conjunto do partido, como sempre, a
presença dos trabalhadores foi margi-
nalizada à medida que as mudanças na
indústria e no mundo do trabalho exer-
ciam sua influência.^6
Era também a época da ascensão da
televisão, dos meios de comunicação
de massa que minam as relações com a
política e a cultura, tão defendidas pelo
partido. Um verdadeiro símbolo: a edi-
tora Einaudi, que publicou Gramsci e
tantos outros grandes autores, caiu sob
domínio do império midiático consti-
tuído pelo empresário Silvio Berlusconi,
fundador do Canale 5, o maior canal de
televisão privado da Itália.
No fim da década de 1980, os mem-
bros permanentes do partido tinham
um sentimento de declínio, reforçado
pela vacilação do bloco comunista e as
desilusões por ele engendradas. O recuo
registrado nas eleições legislativas de
1987 foi visto como um choque: o parti-
do, no entanto, obteve 26,5% dos votos.
Mas a opinião pública mantinha uma
tendência de queda e, principalmente,
de apoio progressivo ao Partido Socialis-
ta Italiano (PSI). Nessas circunstâncias,
a necessidade de renovação impôs-se.
Um homem seria a ponta de lança e a
personificação dessa renovação: Achille
Occhetto, nomeado novo secretário do
partido em 1988, aos 52 anos. Parte do
aparato, ele se tornou o principal cons-

intensidade e na duração: greves, ocu-
pações e confrontos com as forças de
ordem pontuaram uma década inteira,
e o país parecia estar em chamas. Os
movimentos extrapolavam os sindicatos
e partidos. Novas organizações (Lotta
Continua e Potere Operaio, por exem-
plo) lideraram uma subversão nas cores
da bandeira vermelha. Uma parcela da
esquerda radical juntou-se à luta arma-
da, enquanto o Estado respondeu com
uma repressão sem precedentes para
conter a subversão.
Se na época foram as atividades ter-
roristas de pequenos grupos como as
Brigadas Vermelhas que se tornaram co-
nhecidas, verifica-se, por outro lado, que
os atos de violência foram obra principal-
mente de grupos de extrema direita,^3 mais
ou menos ligados a órgãos oficiais. Essa
“estratégia de tensão” suscitou temores
de uma evolução autoritária do regime –
em 1980, ocorreu um atentado à bomba
na estação de Bolonha, onze anos depois
daquele na Praça Fontana, em Milão.
Após o golpe de Estado no Chile, em
1973, o secretário-geral do Partido Co-
munista, Enrico Berlinguer, propôs uma
nova linha, a de um “compromisso his-
tórico” com o adversário, a democracia
cristã, para preservar as instituições de-
mocráticas e viabilizar reformas sociais.
O anticomunismo permeava toda a vida

política e o PCI se beneficiou apenas
parcialmente do clima de revolta. É cer-
to que, nas eleições para a Câmara dos
Deputados de 1976, este último obteve
12.614.650 votos, ou 34,37% – seu recor-
de; naquele momento, os filiados soma-
vam cerca de 1,85 milhão. No entanto,
sua hegemonia sobre a esquerda italia-
na mostrou-se frágil e contestável: o PCI
era criticado por ser uma organização
burocrática que mais desacelerava do
que incentivava a contestação.
Quando a crise econômica se ins-
talou na Europa, iniciou-se uma vira-
da conservadora, tanto na Itália como
em outros lugares: no outono de 1980,
a grande greve das fábricas da Fiat (
dias) terminou em fracasso. Com a cria-
ção do Sistema Monetário Europeu,
apareceu uma nova ortodoxia para re-
definir o quadro do debate em torno
da política econômica; os dirigentes do
movimento operário encontravam-se
então envolvidos na “batalha contra a
inflação”, que exigia moderação nas de-
mandas salariais em um contexto de de-
semprego crescente.^4

A CRISE DA UNIÃO SOVIÉTICA
Em 1984, o presidente do Conselho de Mi-
nistros, Bettino Craxi, acabou com o me-
canismo de indexação dos salários à infla-
ção; o PCI exigiu um referendo, mas a der-

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Cartazes do Partido Comunista Italiano em Roma
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