Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

12 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


trutor de uma estratégia de transforma-
ção liderada por reformadores preocu-
pados em parecer modernos.
As ideias de Occhetto inegavelmente
abraçavam o novo espírito do tempo – li-
beral. “Somos filhos de 89”, maravilhou-
-se o dirigente no bicentenário da Revo-
lução Francesa – em vez das críticas aos
revolucionários de 1793. No lugar da vi-
são centrada no conflito social, ele privi-
legiou uma retórica mais suave que exal-
tava o progresso democrático – aquele
que avança lentamente e não perturba
os círculos de poder. Com a necessida-
de de soltar as amarras, jogava ao mar
o marxismo em desuso. O reformismo
político estava no centro das atenções e
Occhetto desejava que sua organização
aderisse à Internacional Socialista. O fu-
turo tinha o cheiro azulado dos “Estados
Unidos da Europa”, da “via europeia para
o socialismo” delineada por Jacques De-
lors. Ser “moderno” supunha também
repensar o papel do Estado: “O país pre-
cisa de um Estado que administre me-
nos e, por outro lado, seja mais capaz
de oferecer projetos e regras para uma
maior pluralidade de sujeitos, públicos e
privados”, afirmava o dirigente.^7
Para os reformadores, a “virada”
(svolta) deveria impedir o declínio do
partido, com a possibilidade de um elei-
torado mais vasto, de juntar-se a outras
forças exteriores ao partido e beneficiar-
-se de uma credibilidade que abriria as
portas do governo. No caminho para
essa mudança, a referência comunista
pegava mal, como a imprensa burguesa
não deixava de apontar. Foi a crise do
sistema soviético que precipitou a ação
dos reformadores e lhes deu a oportuni-
dade de embarcar na reforma como um
caminho sem volta, o da dissolução.
Assim, no outono de 1989, quando
o assunto não havia sido objeto de ne-
nhum debate interno, Occhetto trouxe
à mesa a necessidade da mudança de
nome. O anúncio incendiou o partido,
mas a liderança manteve o curso. Uma
discussão intensa tomou todos os níveis
do partido. As imagens que se veem nos
documentários – incluindo o de Nanni
Moretti, La cosa (1990) – atestam o cará-
ter apaixonado dos debates: discussões
não faltavam, as lágrimas corriam livre-
mente. A palavra “comunismo” era um
peso morto a ser deixado para trás ou
um legado a ser carregado com orgulho?
Mudar de nome significava abandonar
a identidade, a história do partido? Para
os militantes, essa perspectiva era difícil,
dolorosa, pois para alguns esse compro-
misso era a vida, e a palavra “comunista”,
toda a sua identidade.
Em março de 1990, no Congresso de
Bolonha, a direção ganhou a convicção
da grande maioria dos delegados a favor
da construção de uma nova formação. O
historiador Guido Liguori destacou em
um estudo^8 o peso decisivo do legitimis-
mo que alimentava o funcionamento
ordinário da organização – a tendência


de manter a unidade pela recusa das
divisões, a confiança concedida ao gru-
po dirigente. “Em suma, a tendência ao
conformismo”, como escreve Liguori,
era uma das razões determinantes para
o sucesso do projeto dos reformadores,
“com a deserção silenciosa de milhares
de militantes, que ‘voltaram para casa’
sem lutar”. No ano seguinte foi criado o
Partido Democrático de Esquerda (Par-
tito Democratico della Sinistra, PDS),
com um novo símbolo, o carvalho. Uma
minoria decidiu se dividir para criar o
Partido da Refundação Comunista, mas
seu número de membros continua baixo
em comparação ao PDS.
Nesse banho de juventude, as classes
populares saíram de cena. O PDS con-
seguiu, finalmente, chegar ao poder por
meio de coalizões de centro-esquerda –
como o governo de Romano Prodi (1996-
1998) e depois de Massimo D’Alema
(1998-2000). Mas à custa de renunciar ao
que fundamentava sua existência.
Com o fim do PCI, as capacidades de
resistência da esquerda italiana literal-
mente entraram em colapso, deixando-
-a desamparada diante do surgimento
de uma nova direita ofensiva liderada
por Berlusconi, que fundou o Forza Ita-
lia em 1994. “É notável que os estudiosos
que buscam explicar a adesão de gran-
des setores das classes trabalhadoras
à ideologia conservadora não tenham
procurado enfatizar ainda mais a con-
tribuição dos líderes social-democratas
à desmobilização política produzida por
suas palavras e seus atos”, observou o fi-
lósofo político Ralph Miliband.^9
De fato, para além de um partido ou
de um símbolo, essa renúncia enfraque-
ceu todo um movimento político, sin-
dical, intelectual, todo um ecossistema
ativista capaz, antes, de desenvolver
suas próprias concepções de mundo,
de difundir socialmente seu gosto pela
cultura, de defender de corpo e alma sua
aspiração por um mundo melhor

*Antoine Schwartz é cientista político.

1 Perry Anderson, “An Invertebrate Left” [Uma
esquerda invertebrada], London Review of
Books, v.31, n.5, Londres, 12 mar. 2009.
2 Eric Hobsbawm, Interesting Times. A Twen-
tieth Century life [Tempos interessantes. Uma
vida do século XX], Pantheon Books, Nova
York, 2003.
3 Cf. Frédéric Attal, Histoire de l’Italie depuis
1943 à nos jours [História da Itália de 1943
aos nossos dias], Armand Colin, Paris, 2004.
4 Cf. David Broder, “The Italian Left’s Long Di-
vorce from the Working Class” [A esquerda
italiana e seu longo divórcio da classe traba-
lhadora], Jacobin, Nova York, 14 fev. 2021.
Disponível em: https://jacobinmag.com.
5 Piero Ignazi, “Dal PCI al PDS” [Do PCI ao
PDS], Il Mulino, Bolonha, 1992.
6 Ler Julian Mischi, “Comment un appareil
s’éloigne de sa base” [Como um aparelho se
afasta de sua base], Le Monde Diplomatique,
jan. 2015.
7 Achille Occhetto, Un indimenticabile ’89 [Um
89 inesquecível], Feltrinelli, Milão, 1990.
8 Guido Liguori, Qui a tué le PCI? [Quem matou
o PCI?], Éditions Delga, Paris, 2011.
9 Ralph Miliband, L’État dans la société capita-
liste [O Estado na sociedade capitalista],
Maspero, Paris, 1973.

DUAS LINHAS PARA UM MESMO CAMPO


Na Alemanha,


colapso e conflito


de orientação


Proverbiais e desestimulantes, as disputas internas
dos partidos refletem, às vezes, escolhas estratégicas
cruciais. Na Alemanha, este é o caso do Die Linke
(A esquerda): a formação deveria reconquistar
sua base popular nos estados orientais ou
tentar atrair o jovem eleitorado urbano?

POR PETER WAHL*

D


epois de certo nível, uma derrota
eleitoral se torna uma surra. E,
sem dúvida, é assim que deve-
mos chamar o resultado desas-
troso de 4,9% obtido pelo partido A Es-
querda (Die Linke) nas eleições federais
de setembro de 2021 na Alemanha. So-
mente a aplicação de uma regra espe-
cial garante sua presença no Bundes-
tag: mesmo não ultrapassando a faixa
de 5%, um partido que obtém maioria
em pelo menos três circunscrições (de
um total de 299) pode formar um grupo
parlamentar.
Nem por isso a perda é menos espe-
tacular para essa formação que beirava
os 12% em 2009 e se mantinha em 9,2%
em 2017. Agora, ela obteve apenas 2,
milhões de votos, quase a metade dos
4,3 milhões de 2017. E seu grupo parla-
mentar tem apenas 39 deputados, con-
tra os 60 de antes (de um total de 736).
Esse colapso inicia um novo capí-
tulo na história já rica em derrotas da
“esquerda da esquerda” alemã no pós-
-guerra. Com o Partido Comunista proi-
bido na Alemanha Ocidental em 1956,
foi preciso esperar até 1983 para que os
Verdes – com sua orientação explicita-
mente ecossocialista – representassem
de novo essa sensibilidade no Parlamen-
to. Depois da reunificação, no entanto,
os Grünen (Verdes) se aproximaram do
centro a ponto de participar do governo
neoliberal de Gerhard Schröder (1998-
2005) e desempenhar um papel de des-
taque no conflito militar alemão contra
a Iugoslávia em 1999.
O Die Linke emergiu dessas ruínas
em 2007, reunindo em um novo partido
dois componentes distintos: de um lado,
sindicalistas e ex-sociais-democratas
decepcionados com a tendência direi-
tista de sua formação, o Partido Social-
-Democrata (SPD); de outro, o Partido
do Socialismo Democrático (PDS), her-

deiro do que havia governado a Alema-
nha Oriental. Graças à sua ancoragem
nos Länder orientais, o PDS ultrapassou
o limite de 5% em 2005 pela primeira vez
desde a unificação.^1 O Die Linke cresceu
para preencher um vazio.
Esse ciclo parece ter se encerrado.
O Die Linke vai perdendo uma a uma
suas fortalezas, e não apenas nas re-
giões do leste de modo geral, onde seus
resultados caíram pela metade em dez
anos (passando de 20% para 9,8%), mas
também nas circunscrições simbólicas,
como a de Marzahn Hellersdorf, a leste
de Berlim (famosa por seu rosário de
cidades e sua imensa Aleia dos Cosmo-
nautas), conquistada em setembro pela
direita quando esta ainda dava 51% para
o partido pós-comunista, em 2001...
Por que a esquerda perde? Primei-
ro, por razões demográficas: o núcleo
duro do eleitorado pós-comunista, que
vivenciou a unificação como uma ane-
xação, envelheceu e diminuiu. Ele, so-
bretudo, não se renova mais: o Die Linke
vai deixando de representar os interes-
ses das populações do leste, papel que
lhe permitia atrair novos simpatizantes
contestadores. Todavia, motivos de des-
contentamento não faltam: trinta anos
depois da queda do Muro, uma cortina
de ferro continua dividindo a Alemanha
em matéria de nível de vida, salários,
pensões. Mas, diferentemente dos anos
2000, o Die Linke participa do Executivo
em Berlim, no Mecklemburgo-Pomerâ-
nia Ocidental, e dirige o da Turíngia... A
formação de extrema direita Alternativa
para a Alemanha (AfD) é que agora cap-
ta o voto de protesto no leste e encarna
a oposição – reacionária – nos antigos
baluartes orientais da esquerda.
A eleição de setembro coloca, para o
Die Linke, um problema ainda mais espi-
nhoso: como explicar semelhante queda
no seio dos grupos que, tradicionalmen-
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