Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 13


te, formam sua base social – operários,
desempregados, precários e subassala-
riados – justamente quando a segurida-
de social se impôs como tema dominan-
te da campanha eleitoral, deixando para
trás a economia, o trabalho, o ambiente
e o clima?^2 E como entender que o desa-
feto ocorra igualmente nos centros me-
tropolitanos e estudantis, como Bremen
e Hamburgo, onde numerosos jovens
votaram no partido em 2017? Quem
contava com esses eleitores diplomados
para formar a nova base do partido viu
suas esperanças desmentidas: os jovens
urbanos, na maioria das vezes, votaram
nos Verdes e até nos liberais.
Entre os menos jovens, o SPD captou
perto de um terço dos votos perdidos
pelo Die Linke. Após vários anos de cri-
se, os sociais-democratas lançaram no
esquecimento a era neoliberal de Schrö-
der^3 e passaram a concorrer com o Die
Linke em seu próprio terreno, propon-
do, por exemplo, uma elevação do salá-
rio mínimo a 12 euros por hora (contra
os 9,82 de hoje). A alternância pode ser
observada no comportamento eleitoral
dos sindicalistas: 11,8% votaram na es-
querda em 2017, contra 6,6% em setem-
bro, colocando o Die Linke atrás da AfD
(12,2%) e dos liberais do Partido Demo-
crático Liberal (FDP) (9%)...
Todo colapso político implica cau-
sas internas à organização, e com o Die
Linke não foi diferente. As novas co-
presidentas do partido, Janine Wissler e
Susanne Henning-Wellsow, assumiram
o cargo alguns meses antes do escrutí-
nio; pouco conhecidas do grande públi-
co, não puderam fazer campanha por
causa das restrições sanitárias. No fim
de agosto, uma espetacular balbúrdia
política deu o que falar na imprensa:
quando do voto sobre a participação da
Bundeswehr na operação de evacuação
de Cabul, parte dos deputados do Die
Linke votou a favor, parte contra e uma
terceira se absteve... Portanto, o anún-
cio, sem debate no seio do partido e an-
tes mesmo do escrutínio, de concessões
vultosas em caso de participação no
governo sem dúvida não galvanizou os
simpatizantes.


CONVULSÃO CONTAMINOU
OUTRAS FORMAÇÕES
Contudo, esses acontecimentos recen-
tes não explicam os maus resultados
regionais ou europeus acumulados
desde 2019. O principal problema é o
conflito de orientação que opõe dife-
rentes correntes do partido. Foi a cha-
mada “crise dos refugiados”, em 2015,
que pôs a nu essa divisão. Citando o
programa de 2011, que exige “fronteiras
abertas para todos os seres humanos”,
boa parte dos militantes acolheu com
entusiasmo a derrubada dos obstácu-
los à imigração e exigiu a perenização
da liberdade de instalação. Mas outra
corrente, ao contrário, julgou irrealista
o lema das “fronteiras abertas para to-


dos”. Sahra Wagenknecht é dessa linha.
Então copresidenta do grupo parlamen-
tar, gozando de uma popularidade que
vai muito além dos círculos militantes,
essa mulher carismática e seus parti-
dários mantêm com relação aos refu-
giados uma postura baseada no direito
internacional, mas reclamam também
a regulamentação das migrações. Divi-
sões assim existem igualmente no seio
das esquerdas francesa, britânica e nor-
te-americana, mas, na Alemanha, se su-
perpõem à fratura leste-oeste. O debate
sobre a política migratória logo degene-
rou: Wagenknecht foi chamada publica-
mente de nationale sozialistin – socia-
lista nacional, em referência ao Partido
Nacional-Socialista de Adolf Hitler – por
membros de sua própria formação. Em
2018, ela desafiou ainda mais seus ca-
maradas ao lançar, sem sucesso, o mo-
vimento Aufstehen [Levantai-vos], visto
como concorrente do Die Linke. Fora
da direção do grupo parlamentar desde
2019, a deputada continua muito pre-
sente, sobretudo na mídia.
Assim, o clima deletério do debate
público alemão depois de 2015 se decal-
ca sobre o Die Linke. Maculadas pelas
controvérsias em torno das “políticas de
identidade” e da cancel culture [cultura
do cancelamento], as discussões estra-
tégicas perdem em análise e em diálogo
aquilo que ganham em condenação mo-
ral e hostilidade pessoal. “A mensagem
central que parecia emanar do último
congresso não era um posicionamento
político particular ou o programa eleito-
ral do Die Linke, mas a ‘diversidade’ de
sua nova direção e o caráter inatacável
de suas referências pró-LGBTQIA+, fe-
ministas e antirracistas. É certo que um
partido socialista deva ser tudo isso”, ob-
servou Loren Balhorn, redator na Fun-
dação Rosa Luxemburgo e diretor da

edição alemã da revista Jacobin. “Toda-
via”, continuou Balhorn, “podemos nos
perguntar se esse tipo de mensagem en-
contra eco além dos círculos partidários
imediatos do Die Linke e se dá à popula-
ção um motivo para votar nele.”^4
Wagenknecht aprofundou esse tipo
de análise num livro publicado em abril
de 2021, Die Selbstgerechten [Os mo-
ralistas]^5 , que logo entrou na lista dos
mais vendidos. Lamentando que a direi-
ta adote mais e mais um estilo de vida
moderninho, universitário e virtuoso, a
deputada atribui a erosão da base social
de seu partido à insistência nas políticas
identitárias em detrimento da questão
social. Ela enfatiza a questão de classe,
na qual feminismo, antirracismo, ho-
mofobia etc. se integram numa relação
dialética entre o geral e o particular, ao
contrário das abordagens interseccio-
nais, que, sob o termo de “classismo”,
remetem a questão social a uma forma
de discriminação do mesmo modo que
o sexismo ou o racismo.
Publicada poucos meses antes das
eleições, a obra exacerbou a crise inter-
na, a ponto de alguns militantes exigi-
rem – inutilmente – a expulsão da des-
mancha-prazeres. Ao mesmo tempo que
desencorajam o eleitorado, esses con-
flitos enfraquecem o partido ao adiar a
adoção de estratégias apropriadas dian-
te da crise climática, da digitalização ou
das mudanças dos equilíbrios interna-
cionais. Fato notável, a convulsão que
paralisa o Die Linke afeta outras forma-
ções de esquerda, como a Attac Alema-
nha. A associação, que desempenhou
papel importante até a crise financeira
de 2008, hoje não é mais que a sombra
de si mesma, incapaz não somente de
atualizar a antiglobalização, mas tam-
bém de resolver seus problemas de ma-
neira construtiva.

O Die Linke conseguirá fazer isso?
Três meses depois das eleições, a ba-
talha das correntes internas ainda não
terminou. O Executivo, dominado pela
“esquerda movimentista” (Bewegungs-
linke) de orientação “social”, opõe-se
ao grupo parlamentar, onde predo-
mina uma aliança entre os “realistas”,
frequentemente oriundos do leste, e
deputados mais ou menos próximos de
Wagenknecht.
O menor grupo parlamentar do
Bundestag gozará doravante de uma
vantagem: o Die Linke encarna agora a
única oposição de esquerda à coalizão
governamental entre os sociais-demo-
cratas, os Verdes e os liberais. A confi-
guração lembra a da era Schröder, que
favorecia o Die Linke. A presença do
FDP na coalizão intensifica as contra-
dições no seio desse governo e reduz as
possibilidades de responder à questão
social. Como se vê pela alta dos preços
da energia, a dimensão social da trans-
formação ecológica se impõe. Uma
chance para o Die Linke?

*Peter Wahl é autor de Gilets Jaunes:
Anatomie einer ungewöhnlichen sozialen
Bewegung [Coletes Amarelos: anatomia
de um movimento social atípico], Papyros-
sa-Verlag, Colônia.

1 Ver Peter Linden, “Ce nouveau parti que bous-
cule le paysage politique allemand” [Esse
novo partido que altera a paisagem política
alemã], Le Monde Diplomatique, maio 2008.
2 Fonte: ARD/infratest dimap.
3 Ver Rachel Knaebel, “L’aubaine des sociaux-
-démocrates allemands” [Uma chance ines-
perada para os sociais-democratas alemães],
Le Monde Diplomatique, dez. 2021.
4 http://www.jacobinmag.com, 14 mar. 2021.
5 Sarha Wagenknecht, Die Selbstgerechten:
Mein Gegenprogramm – für Gemeinsinn und
Zusammenhalt [Os moralistas: meu programa
alternativo para o espírito comunitário e a coe-
são], Campus Verlag, Frankfurt.

© Wikimedia

Die Linke não consegue captar os votos de protestos no leste, que cada vez mais tem escolhido o Alternativa para a Alemanha
Free download pdf