Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

14 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


CAPA


A


eleição de 2018 foi um marco pa-
ra a democracia brasileira. A dis-
puta rompeu com vários ciclos
que perduraram até então. Da
perspectiva institucional, a partir da
minirreforma política que entrou em
vigor naquele pleito, o financiamento
de empresas, que vinha desde a eleição
de 1994, deixou de ser permitido; redu-
ziu-se também o tempo de campanha
de 45 para trinta dias; e houve redistri-
buição de tempo do horário gratuito de
propaganda eleitoral. As mudanças
concentravam ainda mais recursos de
financiamento – agora públicos – e de
tempo de televisão e de rádio nas mãos
dos maiores partidos, apontando a fa-
vor da conservação das forças já esta-
belecidas no Congresso Nacional e nos
Executivos nacional e estaduais.
Entretanto, logrou êxito Jair Bolso-
naro, que, além de tornar-se presidente,
ajudou a eleger, no âmbito do Partido
Social Liberal (PSL), 52 deputados fede-
rais e quatro senadores em uma realidade
institucional que havia sido alterada com
o propósito justamente de garantir a ma-
nutenção dos grandes partidos de então.
Em 2014, a legenda havia feito apenas um
deputado federal. Em 2018, com a chega-
da de Bolsonaro, o PSL passou a priorizar
a ideologia conservadora de costumes em
detrimento de seu perfil econômico libe-
ral, ressaltando em campanha a defesa de
pautas como o porte de armas de fogo e a
oposição à legalização do aborto e do ca-
samento de pessoas do mesmo sexo.
Bolsonaro entrou na política em
1988 como vereador na cidade do Rio de
Janeiro. Desde 1990, elegeu-se deputa-
do federal por sete vezes consecutivas,
sempre com um discurso a favor da dita-
dura militar e da prática de torturas. Em
2018, foi capaz de unir, dar coerência e
fortalecer o conservadorismo em suas
diferentes facetas. Reuniu o discurso em
defesa da família tradicional e da Igreja
como bases da formação moral, o libe-
ralismo econômico como meio de cres-
cimento pessoal e do país, e a defesa da
lei e da ordem no âmbito da segurança
pública e no combate à corrupção sistê-
mica na política brasileira.
Não havia nada de novo no discurso
de Bolsonaro. Em sua totalidade, ele me
fazia lembrar os textos de James Q. Wil-
son, que publicou Thinking About Crime


[Pensando sobre crime] em 1975 e in-
fluenciou os parâmetros do debate ideo-
lógico da direita sobre segurança pública.
De acordo com Wilson, falando sobre
a década de 1980 nos Estados Unidos,
era possível imaginar viver em uma so-
ciedade na qual os valores compartilha-
dos do povo, reforçados pela operação
de organizações religiosas, educacionais
e comunitárias preocupadas com a for-
mação do caráter, produziriam cidadãos
menos criminosos, sem diminuir em
grau significativo liberdades políticas.
Todavia, segundo o autor, os esforços se
enfraqueceram à medida que o consen-
so moral em que se baseavam decaiu: a
autoexpressão começou a rivalizar com
o autocontrole como um valor humano
central. Métodos de criação de filhos,
currículos escolares, modas sociais e
tendências intelectuais começaram a
exaltar direitos sobre deveres, esponta-
neidade sobre lealdade, tolerância so-
bre conformidade e autenticidade sobre
convenções. Bolsonaro teve a capacida-
de de conectar as diversas dimensões do
conservadorismo, criando uma narrativa
muito semelhante à descrita por Wilson.

A VALORIZAÇÃO DA IGREJA E DA
FAMÍLIA COMO FORMADORAS DE
CARÁTER E DO AUTOCONTROLE
SOBRE A AUTOEXPRESSÃO
Desde a eleição de 2018, Bolsonaro tem
contado com uma adesão acima da mé-
dia no segmento dos evangélicos neo-
pentecostais. A influência dessa religião
na sociedade brasileira e na política
cresce ano após ano, particularmente
no segmento pentecostal. Dados de pes-
quisa Datafolha apontam que 50% da
população brasileira era católica e era
31% evangélica em 2020. Na década de
1980, o país era francamente católico.
A mobilização dos evangélicos pode
ser explicada no discurso conservador
apresentado anteriormente na medida
em que veem valores de autoexpressão
rivalizarem de maneira crescente com os
valores de autocontrole enquanto valor
humano central. Temáticas de aborto e de
união entre homossexuais se contrapõem
à moral familiar, tida como um dos mais
caros esteios da formação moral cristã.
Até 2018, as igrejas neopentecostais
se dividiam nas eleições presidenciais.
A Igreja Universal, por exemplo, este-

ve associada aos governos do ex-presi-
dente Lula, tendo José Alencar, seu vice,
como um integrante. A associação entre
Universal e PT se manteve enquanto te-
mas relacionados à luta pelos direitos
das minorias cediam centralidade para
esforços na melhoria das condições de
vida da população pobre, também pú-
blico-alvo dos pentecostais.
O afastamento em relação ao PT se
deu por ocasião do lançamento de um
novo Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3), em dezembro de


  1. Este envolvia temas controversos
    para os religiosos, como descriminali-
    zação do aborto e criação de redes de
    proteção dos direitos humanos para a
    população LGBTQIA+.
    As igrejas neopentecostais vêm se
    consolidando como ator político ao atuar
    junto às comunidades, promovendo mo-
    bilização, canalizando demandas e se or-
    ganizando como instituição social com
    ponte com o Estado. Em épocas de elei-
    ção, a confiança entre os fiéis tende a se
    transformar em voto atento à indicação.
    Cabe uma menção à capilaridade
    digital promovida pelos evangélicos em
    campanha. O pastor Silas Malafaia, uma
    espécie de “influencer” evangélico, usou
    seu “canhão digital” a favor de Bolsona-
    ro em 2018. Na época, matéria publicada
    no jornal O Globo (18 mar. 2018) descre-
    via o “batalhão de Malafaia”: 2 milhões
    de seguidores no Facebook, 1,3 milhão
    no Twitter, 1 milhão no Instagram e de-
    zenas de milhões de visualizações no
    YouTube, sem contar a ampla listagem
    de WhatsApp.


A DEFESA DA LEI E DA ORDEM NO
ÂMBITO DA SEGURANÇA PÚBLICA
E NO COMBATE À CORRUPÇÃO
SISTÊMICA NA POLÍTICA BRASILEIRA
A segurança pública é citada sempre
como um dos mais importantes pro-
blemas brasileiros, assim como de resto
acontece com vários países da América
Latina, de acordo com a série históri-
ca do projeto Latinobarómetro. O que
acontece é que – ao contrário do que
estudiosos que se baseiam no concei-
to de pânico moral gostam de dizer – a
preocupação com a segurança pública
não é midiática, mas real, e mobiliza so-
bretudo o pobre que mora em região de
risco, usa transporte público ou bicicle-
ta, se desloca de madrugada pela cidade
para o trabalho, expondo-se ao perigo
por ruas mal iluminadas e ermas, com
restrita presença do Estado.
Sabe-se que a segurança pública
envolve o empenho do município, por
exemplo, na iluminação das ruas e do
governo estadual na ronda da Polícia
Militar. Entretanto, os eleitores também
sabem do papel do governo federal na
fiscalização de fronteiras, portos e aero-
portos para o combate ao contrabando
de drogas e armas, entre outras funções.
Como um participante de um grupo focal
morador de favela do Rio de Janeiro disse,

© Isac Nóbrega/PR

Presidente Jair Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia durante entrevista em 2019

A adesão a Jair Bolsonaro


As pessoas que deixaram de apoiar Jair Bolsonaro tendem a dizer que não viram entrega


de resultados pelo mandatário tanto no combate ao crime e à corrupção quanto no


avanço da economia. Mesmo entre os religiosos, começa-se a questionar o coração


cristão do presidente diante de atitudes e manifestações vistas como sem compaixão


POR LUCIANA VEIGA*

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