Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

16 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


É PRECISO TOCAR O CHÃO DOS NOVOS TRABALHADORES BRASILEIROS


Reconciliar a esquerda


e a classe média


É compreensível que os ex-emergentes, agora em decadência, vejam em Lula a saída
para voltarem a aspirar a uma vida melhor. Mas não podemos nos esquecer daqueles
que se viram espremidos entre pobres e ricos nos governos do PT e que ainda
mantêm certo ressentimento, oscilando na preferência por Lula ou Bolsonaro

POR MOYSÉS PINTO NETO E TATIANA ROQUE*

M


ário mora num bairro de su-
búrbio do Rio de Janeiro e tra-
balha como motorista de táxi
(ele paga diária, não é pro-
prietário da licença). Antes da pande-
mia, tirava uns R$ 3.500 por mês para
manter a família. Sua esposa, Kátia, or-
ganiza festas infantis e o retorno de-
pende muito da época do ano – com a
pandemia, ficou totalmente parada.
Eles têm dois filhos: um na escola pú-
blica e a mais velha na faculdade priva-
da, cuja mensalidade é paga com o es-
forço de Mário e da própria filha, que
faz alguns bicos para manter os estu-
dos. Podemos considerar que a renda
familiar dos quatro é de R$ 5.000 em
média, o que era possível antes da pan-
demia. Isso deve pagar aluguel, condo-
mínio, contas da casa, comida para os
quatro (o mais novo, como todo adoles-
cente, come muito), despesas de saúde
(significativas, pois Mário tem proble-
ma de coração e pressão alta), a facul-
dade da mais velha etc.
Essa família está na extensa faixa
denominada “classe média” no Brasil.
Para o IBGE, famílias com rendimento
entre quatro e dez salários mínimos
são consideradas classe C. Em núme-
ros, são domicílios que se mantêm com
uma renda total entre R$ 4.180 e
R$ 10.450 por mês. Se forem quatro pes-
soas, está longe de ser uma vida fácil.
Ainda assim, R$ 5.000 é bem acima do
que grande parte dos brasileiros rece-
be. Em 2019, a média salarial era de R$
2.543 no país, como mostra a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua (Pnad Contínua).
Ocorre que as bordas entre as clas-
ses média e baixa são porosas e as famí-
lias são constantemente empurradas de
uma para a outra. A família de Mário e
Kátia, que conseguia se manter como
classe C antes da pandemia, provavel-
mente passou a engrossar a classe D; e a
filha do casal quase certamente largou a
faculdade. Essa é uma família hipotéti-
ca, porém com características típicas da
maioria da população brasileira. Sim,
porque a classe C, mesmo tendo dimi-
nuído nos últimos anos, ainda abarca a

maioria de nossa população (em 2017,
incluía 56,3% da população, decrescen-
do para 51% em 2020 e caindo para 47%
depois da pandemia, aproximando-se
do tamanho da classe baixa).
Dentro da classe C estão a velha
classe média e a chamada “nova classe
média”, beneficiada pelas políticas do
PT e responsável pelo boom de consu-
mo que marcou o entorno de 2010. O
comportamento eleitoral dentro dessa
faixa é variável e merece ser analisado
em detalhes, levando em conta diferen-
ciações que ficam apagadas quando se
fala simplesmente em “classe média”.
Houve grande disputa em torno
dos significados da emergência das
classes populares durante o lulismo. A
própria nomenclatura “nova classe
média”, incensada pela mídia e alguns
intelectuais, foi alvo de debates acalo-
rados, propondo-se em contraponto
noções como “nova classe trabalhado-
ra”, “batalhadores”, “classes aspiracio-
nais”, “precariado” ou simplesmente
ainda “pobres”. Esses rótulos não tra-
duziam apenas questões semânticas:
dependendo da palavra, tratava-se de
optar por uma estratégia política a ser
construída para dialogar com esses
sujeitos, que não se viam necessaria-
mente como incluídos nos discursos e
projetos da esquerda.
Neste artigo, tentamos entender
brevemente a subjetividade e as prefe-
rências eleitorais da classe média. Es-
sas pessoas foram o fiel da balança pa-
ra a vitória de Bolsonaro em 2018, como
indicam as pesquisas citadas adiante.
Também é ela que, ao que tudo indica,
garantirá a volta de Lula à Presidência.

COMO A CLASSE
MÉDIA TEM VOTADO?
Durante o período lulista, a classe mé-
dia se tornou mais complexa e passou a
se dividir em dois segmentos: a tradi-
cional e a nova, sendo esta última as-
cendente das classes baixas por meio
das políticas sociais dos governos pe-
tistas. Uma pergunta que tem mobili-
zado analistas é a seguinte: por que
pessoas que foram beneficiadas pelos

governos do PT resolveram votar em
Bolsonaro em 2018? Rosana Pinheiro-
-Machado propõe a noção de classes
aspiracionais para explicar o fenôme-
no, no artigo “O que Lula deu e Bolso-
naro abocanhou” (El País, 21 jun. 2021).
Antes de interpretarmos a subjetivida-
de desses eleitores, vamos entender seu
perfil sociológico, de acordo com a
análise de Jairo Nicolau (2020). Segun-
do ele, o voto em Bolsonaro foi um fe-
nômeno masculino e urbano (princi-
palmente do Rio de Janeiro, São Paulo e
Minas Gerais). Com base em dados, Ni-
colau conclui que a eleição de Bolsona-
ro é parecida com a de Lula em 2002,
com um voto mais urbano e escolariza-
do. Além disso, dos eleitores que vota-
ram em 2014 em Dilma, 40% votaram
em Bolsonaro. Pode-se concluir então,
do cruzamento desses dados, que a
maior parte do eleitor bolsonarista é
pragmática, e não ideológica. São os
chamados swing voters, que oscilam à
esquerda e à direita eleitoralmente.
Analisando séries históricas, um
grupo de pesquisas sobre eleições e de-
sigualdades liderado por Thomas Pi-
ketty tem feito análises em diferentes
países. No caso do Brasil, foram estu-
dados comportamentos eleitorais de
1989 para cá, combinando pesquisas
do Datafolha realizadas logo antes do
segundo turno de todas as eleições pre-
sidenciais. Uma das conclusões mais
importantes é de que o PT passou por
uma metamorfose política de relevo: de
um partido jovem, tido como referên-
cia para pessoas altamente educadas e
de alta renda, a um partido dos mais
pobres, cada vez mais apoiado pelos
moradores do Nordeste, ou seja, uma
população distante de seu locus inicial
no Sudeste. Uma chave para entender
essas mudanças é o impacto das políti-
cas públicas para os mais pobres, como
já se tornou consenso.
Duas fases distintas foram identifi-
cadas pelo estudo mencionado: a das
eleições de 1994, 1998 e 2002, quando a
renda não estava associada à escolha
eleitoral no segundo turno e as políticas
macroeconômicas do governo não

eram focadas em grupos específicos; e a
outra, após a ruptura de 2006, quando a
fatia dos eleitores do PT na faixa dos
10% mais ricos caiu 15 pontos percen-
tuais, ao passo que a fatia entre os 50%
mais pobres cresceu de modo significa-
tivo. Isso é coerente com o impacto elei-
toral de programas sociais, como o Bol-
sa Família e o aumento do salário
mínimo. O grande apoio ao PT entre os
mais pobres continuou em 2010, 2014 e


  1. O que aconteceu, então, no ano fa-
    tídico de 2018? O estudo sugere que
    houve aí uma inédita convergência en-
    tre a classe média e os mais ricos. O
    comportamento da classe média é ana-
    lisado pelas preferências dos eleitores
    que ocupam a faixa dos 40% no meio da
    distribuição de renda (ou seja, nem são
    os 50% mais pobres nem os 10% mais ri-
    cos). Essa faixa intermediária, em 2018,
    tornou-se mais parecida com os 10%
    mais ricos do que em eleições anteriores
    e se voltou contra o PT – diferentemente
    do que havia feito em 2006, 2010 e 2014,
    quando votou de forma mais parecida
    com os 50% mais pobres. Assim, a elei-
    ção de 2018 ficou dividida entre dois
    grupos: os pobres, que votaram majori-
    tariamente em Haddad, e o resto. Para
    entender esse fenômeno, há fatores liga-
    dos à distribuição de renda. A renda mé-
    dia nacional aumentou 18% no período
    petista. No entanto, os ganhos foram di-
    vididos entre dois grupos distantes: a
    metade da população mais pobre e os
    muito ricos. O crescimento não chegou
    aos indivíduos entre os 70% e 90% mais
    ricos na distribuição de renda. Portan-
    to, podemos localizar aí a chamada
    squeezed middle class brasileira, que
    foi deixada para trás no Brasil de Lula e
    Dilma. Acima deles, os ricos estavam
    mais ricos e, abaixo deles, há um fenô-
    meno complexo de subida e descida da
    “nova classe média” emergente.
    Quando a crise econômica ocorreu,
    a partir de 2014, e agravou-se nos anos
    seguintes, tanto a classe média emer-
    gente quanto a classe média decadente
    perderam renda de modo significativo.
    Essa dança das cadeiras ajuda a enten-
    der o voto em Bolsonaro. Quem já esta-
    va espremido alimentou o ressenti-
    mento contra o PT. Quem estava em
    ascensão frustrou-se e resolveu apos-
    tar em alguém novo, que prometia dar
    apoio às aspirações de melhoria de vida
    e aos “empresários”.


LIBERALISMO DE OCASIÃO
Em parte, a adesão – que sustentamos
ser circunstancial e pragmática – dos
emergentes ao bolsonarismo foi ref le-
xo da própria incapacidade de a es-
querda conferir espaço político e sim-
bólico a eles – que não seja a pura e
simples crítica ou condição de proviso-
riedade diante de uma ausente “cons-
ciência de classe”. Há um problema
performativo que consiste em privile-
giar uma narrativa totalizante sobre o
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