Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 17


fortalecimento do neoliberalismo, a
precarização das relações de trabalho
e a formação da falsa consciência do
“empreendedor de si”, porém manten-
do-se impermeável à entrada desses
sujeitos como protagonistas de sua lu-
ta. Uma vez que a própria estrutura so-
cial empurra os sujeitos para essa con-
dição, eles não se sentem contemplados
em termos de reconhecimento pela es-
querda política. Foi exatamente aí que
o novo liberalismo brasileiro surfou.
Longe de seu ancestral acadêmico, tí-
pico das elites letradas, o novo libera-
lismo apareceu com pautas simples,
como liberdade econômica, meritocra-
cia, esforço individual e elogio da ri-
queza – um kit pronto para o uso, refor-
çado por meios de comunicação de
massa e, em muitos casos, coincidente
com o senso comum. O pobre que as-
cendeu socialmente, em meio à bata-
lha empreendedora do cotidiano, pôde
finalmente se olhar no espelho sem
complexos: “eu sou um vencedor, pelo
meu próprio esforço, e não há nada de
errado nisso” (Solano, 2018; Rocha,
2018). Daí a pertinência das pesquisas
de Pinheiro-Machado (2019) e da no-
ção de classes aspiracionais.
Foi esse “novo liberalismo” que, em
parte, alavancou o “bolsonarismo po-
pular”, isto é, a adesão a Bolsonaro entre
os emergentes. O modo simplório e dire-
to de Bolsonaro colocar as coisas, postu-
lando uma desregulamentação geral
que combina com seu modo (miliciano)
de lidar com o Estado, acabou produzin-
do o desejo por mais “liberdade econô-
mica”. Essa narrativa passou a fazer sen-
tido para quem enxergava um Estado
que privilegia os ricos e protege os mais
pobres, mas espreme e desestabiliza as
classes médias. A crítica à corrupção,
por isso, era também política, contra um
certo establishment Estado/grandes em-
presas. Por outro lado, a “liberdade eco-
nômica” mantinha tolerância conside-
rável com o jeitinho do empresário em
driblar a burocracia e as regulações que
não lhe permitem ser rico.
Nesse contexto, cabe perguntar se o
papel das chamadas “pautas morais”
ou de “costumes” não pode ser relativo,
até mesmo provisório. Essas questões
simbólicas e culturais ganharam rele-
vo quando o ressentimento e a frustra-
ção predominaram, funcionando co-
mo uma espécie de compensação da
subjetividade. Com uma situação polí-
tica e econômica mais promissora, po-
de ser que tais temas – que dominaram
o debate público nos últimos quatro
anos – tenham menos importância.
Obviamente, a pandemia também con-
tribuiu para uma possível virada prag-
mática do eleitor médio.


COMO RETOMAR A CONVERSA?
A mensagem das pesquisas é que apa-
rentemente “o sonho acabou”. A famí-
lia imaginária da introdução provavel-


mente desaprova o governo Bolsonaro.
Na faixa entre dois e cinco salários mí-
nimos, podemos dizer que Lula está re-
vertendo bem a tendência de 2018. Ho-
je, as intenções de voto em Bolsonaro,
pela pesquisa Ipec, estão um pouco
acima do total de 22% na faixa entre
dois e cinco salários mínimos, pois ele
tem 27% nessa faixa. No entanto, entre
os que ganham entre cinco e dez salá-
rios mínimos ainda há muita dificulda-
de para as esquerdas. Aí está a classe C;
e, após a pandemia, muita gente que
estava nessa faixa passou para a clas-
se D. Segundo o Datafolha,^1 Bolsonaro
vence Lula no segmento entre cinco e
dez salários mínimos por 42% a 25%.
Ainda segundo o Datafolha,^2 os em-
presários mantêm-se como único seg-
mento em que Bolsonaro vence Lula
com folga (de 57% a 29%). Evidente-
mente, sempre se pode argumentar
que essa adesão é dada pela opção dos
mais ricos pelo governo; no entanto, há
que se entender melhor a autoafirma-
ção como “empresário”, que pode ser
um rótulo usado por sujeitos oriundos
das classes mais baixas, que possuem
um pequeno negócio ou comércio. Na
metodologia do Datafolha há uma pre-
ponderância, dentro da categoria “em-
presários”, de famílias com renda aci-
ma de dez salários mínimos, mas logo
em seguida vêm famílias com renda
entre cinco e dez salários mínimos, que
estão longe de ser ricas. Não podemos
identificar, portanto, aqueles que se
autodenominam empresários somente
com os mais ricos.

pensável planos privados para a classe
média. Se eles puderem contar com
educação pública de qualidade, tanto
básica quanto superior, isso também
aliviará bastante as contas das famílias
da classe C, que hesitam entre escolas
públicas e particulares. É gritante a au-
sência desses temas no debate eleitoral
da esquerda, quando tudo indica se tra-
tar de preocupações essenciais da po-
pulação. Além disso, uma renda básica
pode servir de colchão de proteção con-
tra novas quedas bruscas na qualidade
de vida (além de garantir o mercado lo-
cal, como ocorre no município de Mari-
cá, assegurando também a renda dos
empreendedores). A desburocratização,
com simplificação tributária e regulató-
ria, sem prejuízo dos direitos trabalhis-
tas e questões urbanístico-ambientais,
poderia ser outro ponto cuja efetivação
é do interesse de todos.
O fato é que, para convencer a clas-
se média a aderir a um novo pacto soli-
dário no Brasil, a esquerda terá de olhar
de outra forma para sujeitos que não se
enquadram em suas perspectivas tra-
dicionais e oferecer alternativas espe-
cíficas, sem cair em um discurso macro
abstrato e incapaz de tocar o chão dos
novos trabalhadores brasileiros.

*Moysés Pinto Neto é doutor em Filoso-
fia pela PUC-RS, professor do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Uni-
versidade Luterana do Brasil e editor do
canal Transe no YouTube; Tatiana Roque
é professora da Pós-Graduação em Filoso-
fia da UFRJ, coordenadora do Fórum de
Ciência e Cultura da UFRJ e autora do livro
O dia em que voltamos de Marte: uma his-
tória da ciência e do poder com pistas para
um novo presente (Planeta, 2021).

1 Segundo pesquisa de 13 a 15 de setembro de
2021, disponível em: https://bit.ly/3qgHdCH. A
pesquisa posterior, publicada em dezembro, não
publicizou essas informações específicas ainda
e o Ipec não separa as faixas acima de 5 SM.
2 Segundo pesquisa de dezembro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GETHIN, Amory; MORGAN, Marc. Democracy
and the Politicization of Inequality in Brazil, 1989-
2018 [Democracia e politização da desigualdade
no Brasil, 1989-2018]. In: GETHIN, Amory; MAR-
TÍNEZ-TOLEDANO, Clara; PIKETTY, Thomas. Po-
litical Cleavages and Social Inequalities: A Study
of Fifty Democracies, 1948-2020 [Divisões políti-
cas e desigualdades sociais: um estudo de cin-
quenta democracias, 1948-2020], Harvard: Har-
vard University Press, 2021.
NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma
radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio
de Janeiro: Zahar, 2020.
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser
maior: o que aconteceu com o Brasil e as possí-
veis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2019.
ROCHA, Camila. ‘Menos Marx mais Mises’: uma gê-
nese da nova direita brasileira (2006-2018). Tese
(Doutorado em Ciência Política) – Programa de Pós-
-Graduaçã o em Ciência Política da Faculdade de Fi-
losofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2018.
SOLANO, Esther. Crise da democracia e extre-
mismos de direita. Friedrich Ebert Stifung Brasil.
Análise n. 42/2018, 2018.

É compreensível que os ex-emer-
gentes, agora em decadência, vejam em
Lula a saída para voltarem a aspirar a
uma vida melhor. Mas não podemos
nos esquecer daqueles que se viram es-
premidos entre pobres e ricos nos go-
vernos do PT e que ainda mantêm certo
ressentimento, oscilando na preferên-
cia por Lula ou Bolsonaro. Esses dois
segmentos se bolsonarizaram em 2018,
mas não necessariamente estão ligados
a Bolsonaro por razões profundas. Isso
significa que há espaço para a esquerda
retomar a conversa com a classe média
como um todo, mas para isso precisa
falar de dinheiro, empreendedorismo,
religião e perspectivas de vida para su-
jeitos que não cabem no modelo tradi-
cional da classe trabalhadora. Eles se
autodenominam “empresários”, têm
regimes de trabalho instáveis e são ha-
bitantes das grandes cidades.
A pauta do consumo tem buscado
conexão com os pobres, mas também
com a classe média, nos discursos re-
centes de Lula. Todavia, diante dos
acontecimentos dos últimos anos, tal-
vez essas pessoas queiram mais estabi-
lidade. Não adianta muito poder pagar
um plano de saúde privado quando a
economia se expande (o que depende
também de fatores internacionais) e fi-
car sem assistência de qualidade nos
períodos de crise. Não à toa, após a pan-
demia, a saúde é uma das maiores preo-
cupações dos brasileiros. Um modo evi-
dente, portanto, de atender a essa
demanda é investir pesado em nosso
sistema público de saúde, tornando dis-

© Ricardo Stuckert

Em seus discursos, Lula tem buscado conexão com os pobres e a classe média
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