18 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022
UMA ALIANÇA DA ANTIPOLÍTICA COM MILITARES E NEOPENTECOSTAIS
O governo Bolsonaro
e a direita brasileira
O bolsonarismo é tanto um movimento quanto uma forma de governo, e as estruturas de direita que o apoiaram como
governo tendem a sobreviver à sua derrocada. Algumas delas estão fortemente enraizadas na sociedade, como é o
caso das Forças Armadas. Já o neopentecostalismo não tem uma presença tão estrutural na sociedade, mas chegou
para ficar. Por fim, os grupos da antipolítica tentarão se opor ao novo governo desde o primeiro momento
POR LEONARDO AVRITZER*
J
air Bolsonaro é o terceiro outsider
da direita brasileira que chega à
Presidência nos últimos sessenta
anos. Jânio Quadros e Fernando
Collor o antecederam. Nenhum dos
dois completou o mandato. Todos os
três se elegeram destacando a luta con-
tra a corrupção e tentando traçar uma
relação entre esquerda e corrupção no
governo. Porém, Bolsonaro possui uma
diferença fundamental em relação aos
predecessores: o bolsonarismo tem
traços maiores de movimento do que
de forma de governo, tal como assisti-
mos na convocação de manifestações
contra o STF em 7 de setembro de 2021.
Nesta breve avaliação da relação en-
tre direita e governo Bolsonaro, defen-
derei uma tese: o bolsonarismo é tanto
um movimento quanto uma forma de
governo, e as estruturas de direita que o
apoiaram como governo tendem a so-
breviver à sua derrocada. Como já tive
oportunidade de explicar em meu livro
Política e antipolítica: a crise do governo
Bolsonaro (Todavia, 2020), dois eventos
são centrais na transformação de Bolso-
naro em liderança política nacional, e
os dois ocorreram no início de 2016. No
momento da condução coercitiva do ex-
-presidente Lula, Bolsonaro estava em
frente à sede da Polícia Federal e ali ex-
ternou uma posição que se tornou fa-
mosa: “O PT deve ser afastado do conví-
vio democrático e da liberdade”. Mas foi
no dia 17 de abril, data da votação da au-
torização para o impeachment da presi-
denta Dilma Rousseff, que Bolsonaro se
tornou líder inconteste da direita brasi-
leira. O então deputado federal decla-
rou seu voto da seguinte forma: “Pela
memória do coronel Carlos Alberto Bri-
lhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff,
pelo Exército de Caxias, pelas Forças
Armadas, pelo Brasil acima de tudo e
por Deus acima de todos, o meu voto é
sim”. Com esse voto, Bolsonaro habili-
tou-se como líder da direita brasileira
que vinha se reorganizando desde 2015.
O bolsonarismo como movimento des-
lanchou a partir desse momento e, para
fazê-lo, teve de agregar diferentes seto-
res da direita brasileira.
Três elementos expressam a nova
direita brasileira, tal como ela se fun-
diu com o bolsonarismo: em primeiro
lugar, um ataque à representação tradi-
cional feita por Jânio e por Collor e que
Bolsonaro radicalizou a partir das ba-
ses da Lava Jato e da difusão de uma
concepção de antipolítica; em segundo
lugar, uma reorganização dos elemen-
tos não democráticos do Exército brasi-
leiro, que não foram completamente
domados durante a democratização
brasileira; e, em terceiro lugar, uma
concepção moral e religiosamente con-
servadora que é nova no sentido em
que os elementos conservadores do ca-
tolicismo brasileiro foram há muito re-
lativizados e agora o conservadorismo
religioso volta por meio da pentecosta-
lização e de sua concepção de conser-
vadorismo moral. Permitam-me de-
senvolver cada um desses elementos.
BOLSONARO,
REPRESENTAÇÃO E DIREITA
Há uma crítica à autenticidade do siste-
ma político que emerge no início do sé-
culo X X e está bem explicitada na obra
de Max Weber. Trata-se da ideia da per-
da dos elementos de autenticidade ou
da paixão inerentes à própria atividade
política. A democracia plebiscitária e a
maneira como o sistema político se or-
ganiza, independentemente da própria
origem da representação, levariam a
uma ruptura com os elementos mais
autênticos do sistema político. A ideia é
que o establishment político, ao ser elei-
to, acaba dominado por um conjunto
de estruturas burocráticas e eleitorais
que rompem com os elementos mais
espontâneos da política.
Esses elementos coexistem no po-
pulismo de direita contemporâneo. O
elemento de autenticidade, expresso na
crítica ao sistema político, está relacio-
nado a uma procura de veracidade por
meio de uma tentativa de estreitamen-
to do demos e de ataques ao establish-
ment político que vemos em líderes co-
mo Bolsonaro. Há aí uma tentativa de
Bolsonaro de se conectar com sua base
para além dos elementos da represen-
tação mais clássicos do próprio sistema
político, como as relações partidárias e
a delegação de poder pelo voto. Bolso-
naro tentou fazer isso articulando uma
crítica à ideia de representação e se tor-
nando o campeão da antipolítica.
A antipolítica é a principal concep-
ção que surgiu no Brasil na década pas-
sada como reação tanto à crise do go-
verno de esquerda quanto aos
escândalos de corrupção do sistema po-
lítico. A antipolítica possui dois elemen-
tos principais: o primeiro deles é a ideia
de que o Estado e as políticas públicas
não são relevantes. Essa concepção
apareceu em um cenário político domi-
nado por discussões em torno da cor-
rupção e dos privilégios corporativos.
Um segundo elemento que decorre da
antipolítica é uma reação à ideia de que
instituições e representantes eleitos de-
vem discutir, negociar e processar res-
postas a temas em debate no país,
transferindo-os para o campo da justiça
ou da opinião pública. A antipolítica
constitui uma negação de atributos co-
mo a negociação ou a coalizão. Ela se
estabeleceu no Brasil a partir da supos-
ta luta anticorrupção na qual a ética da
autenticidade foi instituída como um
dos valores máximos da política. Nin-
guém é contra a luta anticorrupção, e
uma sociedade sem corrupção conti-
nua fazendo parte de um horizonte utó-
pico e desejável no Brasil. Porém, existe
um fio da navalha entre a construção de
um horizonte utópico e a transforma-
O presidente Jair Bolsonaro participa de cerimônia na Escola Naval ção de grupos políticos, partidos e cida-
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