Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 19


bolsonarismo. O artigo 142 da Consti-
tuição define as Forças Armadas como
instituições nacionais “permanentes e
regulares, organizadas com base na
hierarquia e na disciplina, sob a autori-
dade suprema do Presidente da Repú-
blica, e destinam-se à defesa da Pátria,
à garantia dos poderes constitucionais
e, por iniciativa de qualquer destes, da
lei e da ordem”. Evidentemente, a porta
de entrada para a intervenção dos mili-
tares na política não foi fechada no Bra-
sil e se reabriria a partir da crise que se
estabeleceu entre 2014 e 2018.
Esse é o segundo pilar do que pode-
mos chamar de direita no Brasil. Os mi-
litares são conservadores em diversos
sentidos: o primeiro e mais importante
é seu pouco apreço pela ordem civil e
por um papel limitado da corporação
na política. Mas o conservadorismo
militar não para aí. Os militares tam-
bém não têm nenhum apreço pelos di-
reitos humanos, tal como mostraram
no Haiti e nas Operações de Garantia
da Lei e da Ordem, e ainda têm uma vi-
são completamente ultrapassada da
Amazônia e da questão indígena. Seu
papel em um novo governo de esquerda
promete ser limitado inicialmente, mas
contencioso assim que questões como
direitos humanos e Amazônia entra-
rem na agenda.

RELIGIÃO E DIREITA NO BRASIL
No processo de formação do Brasil, o
Estado contou com um sócio funda-
mental: a Igreja católica. O catolicismo
que se formou no Brasil foi de um tipo
muito diferente daquele implantado na
América Hispânica e com um papel di-
verso da religião na formação dos Esta-
dos Unidos. No caso brasileiro, o catoli-
cismo foi ao mesmo tempo monopolista
e tolerante, ou tolerante porque mono-
polista. Praticamente, a única barreira
a aportar no Brasil, até o fim do impé-
rio, era a religiosa: “do que se fazia
questão era da saúde religiosa: a sífilis,
a bouba, a bexiga e a lepra eram trazi-
das pelos europeus e negros de várias
procedências”.^1 De todas as formas, pa-
ra o que nos interessa aqui, o importan-
te é que a posição religiosa monopolis-
ta associada à aversão ao formalismo
leva ao que podemos chamar de “f lexi-
bilização do rito”. Assim, a religião ca-
tólica no Brasil jamais representou
uma ética de vida, e sim uma comu-
nhão coletiva por meio do rito que ten-
tava criar um padrão de inclusão.
O principal processo a afetar a reli-
giosidade no país no início do século
X XI é a emergência das denominações
neopentecostais. Como se sabe, essas
denominações introduzem no cristia-
nismo a ideia de uma teologia da com-
pensação mundana, em oposição ao
catolicismo e ao protestantismo clássi-
co, que defendiam a compensação no
além ou no futuro. Sua teologia, como
nos lembra Ricardo Mariano, “encai-

dãos em párias a serem perseguidos nas
ruas, aeroportos e redes sociais e na
transformação de indivíduos com
ideias completamente banais em mitos
em razão de sua autenticidade.
Estas são as características mais
fortes do bolsonarismo enquanto dou-
trina de direita e que provavelmente
sobreviverão enfraquecidas depois das
eleições: a tentativa de transformação
da esquerda brasileira em um conjunto
de párias a serem perseguidos por cau-
sa de suas concepções políticas e mo-
rais e a tentativa de introdução de um
elemento de autenticidade da repre-
sentação. Como sabemos, não há pro-
blema se os bolsonaristas ou Bolsonaro
xingam ministros do Supremo ou seus
inimigos no Congresso. Tudo isso faz
parte de uma lógica de recuperação da
autenticidade política que Bolsonaro
soube explorar como poucos. Esse é um
dos elementos da nova direita no Brasil
que será menos significativo se a derro-
ta do capitão se confirmar em 2022.


MILITARES E DIREITA NO BRASIL
O Brasil tem uma corporação militar
atípica. Sendo um país que não passou
por nenhum conf lito militar considerá-
vel desde o fim da Guerra do Paraguai e
que teve uma presença pouco significa-
tiva durante a Segunda Guerra Mun-
dial, ele conseguiu transitar de uma for-
ma pessoal de governo, o império, para
uma forma supostamente impessoal, a
república, por meio de um golpe militar.
A república no Brasil enfrenta, desde
seu início, um problema recorrente: a
politização da corporação militar e as
formas de tutela do sistema político es-
tabelecidas pela corporação fardada. A
reconstrução da legitimidade dos mili-
tares, que se operou após os anos 1990,
foi reforçada pela abertura do bolsona-
rismo aos militares, o que recoloca o te-
ma na agenda da política brasileira.
Os militares saíram da Presidência
em 1985, após uma passagem desastro-
sa que contraria sua própria narrativa
acerca do período, baseada em três mi-
tos: eficiência, legitimidade da repres-
são política e ausência de corrupção. Ao
final do período autoritário-militar, esse
tripé estava em crise profunda e os mili-
tares negociaram a volta aos quartéis –
uma volta, como sabemos, provisória e
recheada de benefícios corporativos.
Ainda durante a elaboração da
Constituição de 1988, algumas tendên-
cias de longo prazo foram se afirman-
do: a primeira foi a recuperação da
confiança da população nos militares.
A segunda tendência diz respeito à au-
torização para a intervenção das For-
ças Armadas na segurança pública e na
política. Ela é relacionada ao espaço
que os militares foram capazes de pre-
servar para si na Constituição de 1988 e
viria a determinar os principais ele-
mentos da conjuntura entre 2016 e
2020, bem como a relação entre eles e o


xou-se como uma luva tanto para a de-
manda imediatista da resolução ritual
de problemas financeiros dos fiéis mais
pobres como para a demanda dos que
desejavam legitimar o seu modo de vi-
da, fortuna e felicidade”. Ou seja, o neo-
pentecostalismo entra no Brasil para
ocupar um espaço que o catolicismo,
seja como religião pública, seja como
religião privada, não é capaz de ocu-
par: o espaço de construção e justifica-
ção de uma ética de sucesso individual
e ascensão social, em especial para a
população de baixa renda. No entanto,
o que nos interessa para uma discussão
sobre tolerância e violência são os dois
passos seguintes do neopentecostalis-
mo: a disputa pelo caráter público da
religião por meio da representação par-
lamentar e a tentativa de demarcação
de hábitos e costumes por meio da
atualização simbólica da ideia do de-
mônio. Não por acaso, ambas as di-
mensões foram importantes na cam-
panha eleitoral de 2018.
Atualmente, é mais do que conheci-
do o movimento das denominações
neopentecostais visando aumentar sua
representação parlamentar. Logo após
as eleições de 2018, a bancada evangéli-
ca reuniu 82 deputados e senadores e
esperava contar com o apoio de até 150
parlamentares (Folha de S.Paulo, 10
out. 2018). Alguns deputados neopen-
tecostais se tornaram campeões de vo-
tos, como o bispo Rodrigues. O pastor
Marcelo Crivella, depois de receber 3,
milhões como senador, elegeu-se pre-
feito do Rio de Janeiro. O que é impor-
tante notar nesse movimento, que con-
tinua em expansão no país, é que o
ingresso dos neopentecostais na políti-
ca mudou o arranjo histórico brasileiro
em relação à ideia de religião pública.
Apesar de o catolicismo brasileiro in-
sistir em uma concepção tradicional de
religião pública por meio da qual o sis-
tema político lida informalmente com
os interesses da Igreja católica, essa
concepção se torna inviável pela ma-
neira como a questão da demarcação
dos valores religiosos e seculares aden-
tra o sistema político. Portanto, nesta
década, a questão que surgiu foi uma
adaptação do secularismo do Estado a
uma pauta religiosa valorativa. Ne-
nhum episódio foi mais claro, nesse
sentido, do que o amplo envolvimento
da Igreja Universal do Reino de Deus
(Iurd) na campanha de Bolsonaro.
É isso que explica o surgimento de
um conjunto de propostas políticas so-
bre temas como a família (o chamado
Estatuto da Família) e o papel da mu-
lher, que hoje são pauta fundamental
da direita brasileira. Mas, ainda pior, é
possível identificar um conjunto de
grupos que passa a defender a hegemo-
nia do campo valorativo religioso em
relação ao secular.
Não é possível subestimar o papel
que a mudança na organização da reli-

giosidade no Brasil teve em relação às
estruturas de tolerância da sociedade.
Provavelmente, esse é o elemento que
diferencia os períodos de regressão de-
mocrática dos anos 1950 e 1960 da ex-
periência atual. No caso da regressão
democrática posterior à eleição de 2014,
ela se expressa com fortes tonalidades
de intolerância na sociedade – por
exemplo, na comemoração da prisão
dos envolvidos no escândalo da Petro-
bras, nas agressões físicas a membros
de minorias e na interdição de exposi-
ções e eventos culturais.
No que diz respeito ao terceiro pilar
da direita brasileira, o neopentecosta-
lismo moralmente conservador, acho
que podemos esperar algum nível de
autocontenção neste ano. Partes do
neopentecostalismo como a Iurd te-
riam dificuldade de sobreviver sem o
governo ou em conf lito aberto com ele.
Eles são por demais dependentes de
isenções tributárias e concessões de rá-
dio e TV para adotar uma política de
enfrentamento aberto. Ainda assim,
acho pouco provável que eles não se-
jam agressivos na defesa de uma agen-
da moral conservadora.

DIREITA, MILITARES
E RELIGIÃO NO BRASIL
Estou entre aqueles que acham que o
ex-presidente Lula tem grandes possi-
bilidades de ganhar as eleições deste
ano. Mas os setores de direita descritos
anteriormente não vão desaparecer da
cena política, mesmo no caso de derro-
ta do atual presidente. Alguns deles es-
tão fortemente enraizados na socieda-
de brasileira, como é o caso das Forças
Armadas, que completam no ano que
vem cem anos de intervenções não de-
mocráticas no país e têm uma agenda
corporativa consolidada. Já o neopen-
tecostalismo não tem uma presença
tão estrutural na sociedade brasileira,
mas não tenho quaisquer dúvidas de
que ele chegou para ficar. Seu maior
problema é o desgaste que a adesão ao
bolsonarismo e a ação dos pastores du-
rante a pandemia produziu. O mais
provável é uma posição de contenção
voluntária. Assim, o que podemos es-
perar no caso de uma derrota do bolso-
narismo, que parece provável neste
momento, é uma retração das forças de
direita presentes fora da política, mili-
tares e grupos religiosos em especial.
No caso dos grupos da antipolítica, eles
tentarão se opor ao novo governo desde
o primeiro momento.

*Leonardo Avritzer é professor do De-
partamento de Ciência Política da UFMG e
autor de diversos livros, dos quais o mais
recente é Política e antipolítica: a crise do
governo Bolsonaro (Todavia, 2020).

1 Marcelo Gruman, “O lugar da cidadania: Esta-
do moderno, pluralismo religioso e represen-
tação política”, Revista de Estudos da Reli-
gião – REVER, n.1, ano 5, 2005.
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