Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

2 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


EDITORIAL


© Claudius

POR SILVIO CACCIA BAVA

C


erta vez perguntei a um amigo: o
que é ser de esquerda hoje? E ele
me respondeu: estatizar todos os
bancos privados, por exemplo. A
radicalidade da proposta me surpreen-
deu, mas trouxe para a conversa a ques-
tão da necessidade da ruptura. Não se
pode pedir às elites que abram mão de
seus lucros em nome do bem-estar das
maiorias. Elas se tornaram elites e con-
tinuam controlando os espaços de po-
der justamente porque expropriaram
direitos das maiorias.
Se para assegurar seus privilégios e
o controle da máquina pública for ne-
cessário adotar regimes políticos dita-
toriais, os capitalistas o farão, como já
fizeram em vários momentos da histó-
ria universal e brasileira. É por isso que
seguem apoiando o governo Bolsonaro.
Para as grandes empresas, a demo-
cracia é vista hoje em dia como um em-
pecilho para a acumulação. Sem a
pressão das revoluções que marcaram
a primeira metade do século X X, os ca-
pitalistas perderam o medo e decidi-
ram que não há mais espaço para a
conciliação nem para novos pactos so-
ciais, como foram a social-democracia
europeia e o Welfare State nos Estados
Unidos. A luta pela democracia e pelos
direitos humanos é uma luta dos des-
possuídos e – fica cada vez mais claro –
uma luta anticapitalista.
As mudanças recentes no modo de
produção capitalista, com o surgimen-
to de empresas que valem trilhões de
dólares e são mais poderosas que mui-
tos governos, impõem ao planeta um
processo de destruição do meio am-
biente e um aprofundamento das desi-
gualdades sem precedentes. Enfrenta-
mos uma crise sistêmica no modo como
se organizam e funcionam nossas so-
ciedades para atender aos interesses do
grande capital. É o que provoca o mo-
mento de barbárie que atravessamos.
Em sua irracionalidade destruidora,
sem controles que defendam o interes-
se público, o capitalismo ameaça nossa
espécie e a vida no planeta.
Para enfrentar a crise – ambiental,
sanitária, social, econômica – é neces-
sário desmontar esse poder das gran-
des corporações e instituir novas for-
mas de controle democrático e cidadão
sobre a economia e a política. Um novo
modo de organizar a vida em sociedade
e atender às demandas das maiorias
deve ser construído. Não precisamos
do agronegócio, da mineração predató-

ria, da concentração bancária e finan-
ceira, de nos tornarmos outra vez uma
plataforma extrativista e predatória ex-
plorada pelas grandes corporações,
que, depois de destruírem nossa indús-
tria, nos vendam os produtos indus-
trializados de que necessitamos.
O desafio é essencialmente político.
Como retirar o poder do capital sobre
os destinos de nossa sociedade? Como
enfrentar as urgências sociais e am-
bientais e assegurar um futuro para as
novas gerações? A história nos ensina
que é com rupturas, e não apostando
em continuidades às vezes apresenta-
das sob novas roupagens.
Se tivéssemos uma imprensa sem
subserviência ao capital, saberíamos da
maior mobilização popular ocorrida na
Bolívia desde 2006, quando o partido
Movimento para o Socialismo se elegeu
pela primeira vez. Terminando em 29 de
novembro último, na Plaza San Francis-
co, em La Paz, estima-se que 1 milhão
de pessoas participaram da marcha
Território e Dignidade para sustentar o
governo de esquerda eleito democrati-
camente e suas políticas. O país não
chega a ter 12 milhões de habitantes.

Se tivéssemos uma imprensa sem
subserviência ao capital, saberíamos
mais das lutas do povo chileno contra o
neoliberalismo e o governo de direita,
que a partir de outubro de 2019 tomou
as ruas e conquistou, em referendo de
novembro de 2020, o direito de produ-
zir uma nova Constituição para o país,
com constituintes eleitos para esse
fim, com paridade entre homens e mu-
lheres. A Constituinte já está funcio-
nando e apresentará em 2022 um novo
projeto de Constituição para ser apro-
vado em referendo popular. Não foi
sem sacrifícios que o povo chileno con-
quistou o direito de escrever sua nova
Constituição sem a tutela do capital. A
mobilização de 2019 terminou com um
saldo de trinta mortos e 460 pessoas
com mutilações oculares.
O que esses exemplos nos trazem é a
importância da mobilização popular. O
poder que está em mãos do povo é o po-
der da mobilização nas ruas, da pressão
direta sobre as autoridades. Mesmo
quando a disputa se faz via eleitoral,
quando a esquerda ganha, seus resulta-
dos só são assegurados pela sustentação
popular das políticas de transformação.

Neste ano eleitoral, a defesa de um
projeto de uma nova sociedade, que su-
pere o controle capitalista da vida, é o
que pode dar esperança às grandes
maiorias despossuídas. Essa identida-
de do projeto de transformação não po-
de ser perdida em nome de alianças pa-
ra a governabilidade com quem até
ontem estava do outro lado.
A recente experiência da união das
esquerdas em Portugal, que viabilizou
o governo do Partido Socialista, trouxe
a recuperação dos salários dos traba-
lhadores e suas aposentadorias, bem
como a melhoria nas políticas sociais,
mas está se revelando frágil para operar
transformações que retirariam o poder
dos capitalistas para impor o modelo de
gestão e os programas de governo.
Sem acabar com os privilégios que
beneficiam as grandes corporações e o
grande capital não se alcança um mo-
do de vida que assegure a sustentabili-
dade ambiental e a dignidade de todos
os brasileiros e brasileiras.
Como nos aponta o economista
francês Thomas Piketty,^1 enfrentar as
desigualdades não é uma questão eco-
nômica. As transformações que deseja-
mos focam a questão do poder. Trata-se
de criar uma nova Constituição e novas
instituições que coloquem no centro
das decisões o poder popular. Só assim
será possível promover uma repartição
das riquezas que enfrente os privilégios
e financie as políticas públicas por
meio das receitas fiscais dos atores eco-
nômicos mais prósperos.
1 Ver http://www.veneta.com.br/livros/thomas-
-piketty-e-o-segredo-dos-ricos.

Os limites das


propostas de mudança

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