Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 3


A


França vai passar por uma elei-
ção presidencial em três meses e
é muito nítida a sensação de que
a esquerda vai perdê-la mais uma
vez. Isso é ainda mais visível porque,
mesmo no caso improvável de que as
esquerdas estivessem unidas durante a
votação, as várias tendências que com-
põem essa “família” já não têm muito
em comum. Como elas governariam
juntas, quando se opõem em questões
tão essenciais como a cobrança de im-
postos, a idade de aposentadoria, a
União Europeia, a continuação ou o fim
da energia nuclear, a política de defesa,
as relações com Washington, Moscou e
Pequim...? Apenas o medo comum da
extrema direita ainda as une. Mas, ao
longo de quatro décadas, a ascensão
desta última continuou, enquanto “a
esquerda” exerceu o poder por vinte
a nos (1981-1986, 1988-1993, 1997-2002,
2012-2017). Em outras palavras, as es-
tratégias adotadas para conter esse pe-
rigo falharam espetacularmente.
Fora da França, a imagem não é mais
brilhante. “Não se trata de girar a faca
na ferida. Estamos atolados! A esquerda
está destruída em toda uma série de paí-
ses”, admite Jean-Luc Mélenchon,^1 que
parece estar na corrida liderando a es-
querda, mas atrás de quatro candidatos
da direita e da extrema direita. Em 2002,
os sociais-democratas comandavam
13 dos 15 governos da União Europeia;


vinte anos depois, existem apenas 7 em
27 (Alemanha, Finlândia, Suécia, Dina-
marca, Espanha, Portugal e Malta). Esse
colapso não deixa de estar relacionado a
um paradoxo cruel, como observa Jean-
-Pierre Chevènement: “A globalização
neoliberal, por meio da livre circulação
de bens, serviços, capitais e pessoas, é
questionada não pela esquerda, que se
aliou amplamente ao social-liberalismo,
mas pela chamada direita ‘populista’”.^2
Tal “questionamento” deveria, de
fato, ter favorecido a “esquerda da es-
querda”, mas a paisagem não é mais
alegre desse lado. Na Grécia, o Syriza
foi intimado por seus credores a endu-
recer as políticas econômicas e finan-
ceiras que se comprometera a comba-
ter, resignou-se a isso, depois perdeu
o poder; o Podemos, na Espanha, e o
Die Linke, na Alemanha, estão enfra-
quecidos (ver págs. 8 e 12); os comu-
nistas franceses já não têm nenhum
eleito para o Parlamento Europeu. E
isso não é tudo! Depois de liderar o
Partido Trabalhista britânico na tenta-
tiva de libertá-lo de sua rotina blairis-
ta, Jeremy Corbyn agora está entre os
não membros, enquanto nos Estados
Unidos Bernie Sanders, que também
esperava conferir uma nova identidade
a um partido ao organizar a resistência
contra a globalização neoliberal, viu
sua campanha presidencial entrar em
colapso em menos de uma semana. Só

na América Latina a esquerda encontra
motivos de conforto (ver pág. 22).
Para serem alcançados, os objetivos
de transformação social devem ser res-
paldados por um poderoso movimento
das classes populares. Todos estão bem
cientes de que a consciência das falhas
de uma política, ou mesmo da ilegiti-
midade de um sistema, não gera auto-
maticamente a vontade de superá-las.
Quando faltam os instrumentos para
conseguir isso, a revolta ou a ira muitas
vezes dão lugar à desenvoltura, ao salve-
-se quem puder ou à convicção de que
os direitos sociais do vizinho são privi-
légios. Esse terreno fértil então favorece
os conservadores e a extrema direita. Na
França e em outros lugares, o fracasso
da maioria das principais mobilizações
sociais nos últimos vinte anos, em parte
atribuível a estratégias sindicais inefica-
zes (movimentos de “pula-catraca” na
SNCF e na RATP), também deve muito
às políticas governamentais que impedi-
ram a organização de greves, impondo,
por exemplo, um serviço mínimo nos
transportes. Porque a burguesia sabe
aprender com suas derrotas e destruir
as ferramentas que as causaram. Ela não
hesita em mudar as regras do jogo ou
transgredi-las. Sempre que precisa, ela
pode fazer isso – e o faz. Como observa-
va o filósofo Lucien Sève, “o capitalismo
não vai desabar sozinho, ainda tem for-
ça para levar todos nós à morte, como

aqueles pilotos de avião que se suicidam
com seus passageiros. É urgente entrar
na cabine para assumir os controles”.^3
Por muitas vezes, a esquerda entrou
nessa cabine. E é um pouco sua defi-
ciência hoje, pois a lembrança de suas
passagens no poder destrói a vontade de
lhe confiar novamente as alavancas de
comando. Nomes como Blair, Clinton,
Mitterrand, Craxi, Gonzales, Schröder
e Hollande frequentemente provocam
violenta rejeição. A tal ponto que seria
preciso voltar no tempo e vasculhar um
estoque de fotos em preto e branco para
que o nome “esquerda” pudesse provo-
car novamente uma nostalgia: o New
Deal, o Front Populaire que governou a
França entre 1936 e 1938, “o espírito de
1945” (ao qual os britânicos devem seu
serviço público de saúde). A história das
decepções que se seguiram, especial-
mente nos últimos anos, é conhecida;
não há necessidade de detalhá-la aqui.
No entanto, duas dimensões merecem
ser lembradas: de um lado, longe de ter
simplesmente falhado em aplicar seu
programa, a esquerda adotou o de seus
adversários; de outro, quando se apres-
sou em capitular – desde o primeiro dia
de seu mandato, no caso do presidente
François Hollande –, não foi um golpe de
Estado nem um exército estrangeiro que
provocou esse alinhamento, e sim um
estrangulamento financeiro. “A Prima-
vera de Atenas”, resumia em 2015 Yanis

DOSSIÊ ESPECIAL – POR QUE A ESQUERDA PERDE


A gente gostaria, mas não pode...


É inverno para a esquerda europeia. Distantes das esperanças despertadas em seu lançamento, as novas formações


críticas da social-democracia, Podemos na Espanha (pág. 8 ) e Die Linke na Alemanha (pág. 12 ), estão fragilizadas,


enquanto na Itália o desaparecimento do Partido Comunista, em abril de 1991, deixou o campo progressista perdido


(pág. 11 ). Incapaz de ouvir as aspirações populares e aproveitar o descontentamento geral (pág. 6 ), a esquerda


espera reunir, graças a uma retórica consensual, grupos sociais que, no entanto, tudo separa (ver abaixo)...


POR BENOÎT BRÉVILLE E SERGE HALIMI*

Free download pdf