Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 31


donar sua missão nas Olimpíadas. Apesar
do apoio até o último momento do então
primeiro-ministro, Suga Yoshihide, ele
teve de se conformar em anunciar sua
saída, no dia 12 de fevereiro: era a pri-
meira vez que um peso-pesado do PLD
era forçado a renunciar por declarações
sexistas. Patrocinadores das Olimpíadas
e muitas personalidades se declararam
contrários a seus comentários.
Já em 6 de fevereiro, as feministas or-
ganizaram um programa de duas horas
e meia chamado Don’t Be Silent, com a
hashtag em japonês “wakimaenai onna-
tachi” (“mulheres que não permanecem
discretas”), no canal da internet Choose
T V.^8 Por iniciativa da filósofa Reii Nagai,
25 escritoras, editoras, representantes de
ONGs e militantes feministas diversas
foram convidadas a comentar o conjun-
to da declaração de Mori, em especial a
parte menos conhecida no exterior, so-
bre o “espírito competitivo” das mulhe-
res, que seria tão grande que, “quando
uma levanta a mão [para falar], as outras
se sentem obrigadas a também se ex-
pressar”. Felizmente, concluiu ele, “em
nosso comitê organizador temos sete
mulheres, mas todas sabem se compor-
tar”. As reuniões, segundo Mori, deve-
riam ser meras salas de registro das deci-
sões dos chefes. Principalmente porque
as mulheres são criadas com a ideia de
que se calar é uma virtude! E isso diz res-
peito a todos os círculos profissionais:
publicidade, moda, mundo editorial,
cuidados pessoais etc. A incapacidade
do PLD de mudar qualquer coisa em re-
lação ao assunto fez dele uma unanimi-
dade. Era hora de elas falarem.
Embora as reações negativas con-
tra o feminismo sejam frequentes na
sociedade, a geração mais jovem está
se tornando mais aberta, envolvendo-
-se em temas como meio ambiente ou
simplesmente a questão de conciliar
trabalho e família. A ativista Ogawa
Tamaka, por exemplo, explica que se
tornou feminista após ser chamada
muitas vezes de kusofemi (“podridão
feminista”), por causa de seu artigo de
2013, no qual defendia mulheres que
trabalham e criam os filhos.
E essa, no entanto, é uma questão
central no Japão, em razão da baixa
taxa de natalidade, do envelhecimento
da população e da queda dos salários
de uma parte significativa dos jovens
em situação de precariedade. Os filhos
nascidos fora do casamento não repre-
sentam mais do que 3% dos nascimen-
tos (62,2% na França), e a decisão de se
casar ainda depende da capacidade de
o homem sustentar a família, embora a
mentalidade esteja mudando. A estrutu-
ra socioeconômica e familiar implanta-
da desde 1945 continua sendo um obs-
táculo considerável. Ela ainda obriga as
mulheres a escolher entre o casamento
e a carreira. É verdade que a curva em M
que descreve a taxa de atividade femini-
na – aumenta com a idade, diminui após


o casamento ou a chegada de um filho e,
em seguida, recomeça depois que os fi-
lhos crescem – deslizou para uma idade
mais avançada, e as mulheres voltam ao
lar aos 30 anos, em vez de aos 25. Sair do
emprego depois de se casar ou ter filhos
não tem mais base legal desde 1986 (na
maioria das empresas, as mulheres assi-
navam um contrato comprometendo-se
a sair caso se casassem ou tivessem um
filho, embora não haja nenhuma dis-
posição nesse sentido na lei trabalhis-
ta). Mas essa continua a ser a realidade
para grande parte das mulheres: apenas
38% delas voltam ao trabalho após o pri-
meiro filho, apesar das inúmeras cam-
panhas realizadas pelo governo, desde
2012, incentivando a conciliação entre
trabalho e família.
A ratificação no Parlamento japonês
da Convenção para a Eliminação de Toda
Discriminação contra as Mulheres (Ce-
daw), em 1985, levou à adoção de uma lei
para “o equilíbrio de oportunidades de
emprego entre homens e mulheres”, que
entrou em vigor em 1986. Mas os líderes
empresariais a contornaram, inventan-
do um sistema de duas vias: uma “via
global” (sogoshoku), aberta à promoção,
e uma “via comum” (ippanshoku), sem
evolução de carreira nem promoção.
As mulheres devem se decidir por uma
delas quando são contratadas, mas es-
colher a via global significa submeter-se
a longas horas de trabalho ou muitas
transferências para o interior, a exemplo
dos homens – o que constitui o principal
obstáculo a qualquer conciliação entre a
vida familiar e profissional.
A proporção de mulheres executi-
vas em empresas privadas estagnou em
cerca de 9% e permanece muito menor
para os cargos mais elevados. Ainda
que a diferença salarial entre mulheres
e homens tenha caído de 40% na déca-
da de 1990 para 24,5% em 2020, segun-
do o Ministério da Saúde e do Trabalho
do Japão (contra 16,8% na França), essa
redução deve-se mais à queda dos salá-

rios masculinos nos últimos vinte anos
do que ao aumento dos salários femini-
nos. E essa estatística não leva em conta
a idade: entre 49 e 55 anos, os homens
ganham anualmente em média, ainda
segundo o Ministério da Saúde e Traba-
lho (2021), 4,2 milhões de ienes (R$ 210
mil), enquanto as mulheres atingem o
pico de sua carreira em 2,74 milhões de
ienes (R$ 140 mil), na mesma faixa etá-
ria. Além disso, as mulheres estão com
frequência em situação precária (tempo
parcial, trabalho intermitente, de dura-
ção limitada, contrato provisório etc.),
recebendo menos de 55% do salário
médio masculino, segundo os mesmos
dados, e sua participação nesse tipo de
trabalho só aumenta.
Essa situação também se explica por
duas outras leis aprovadas em 1986. A
primeira reduz o imposto de renda de
um cônjuge em 380 mil ienes (R$ 19
mil) caso o outro não tenha uma ren-
da anual superior a 1,03 milhão de ie-
nes (R$ 50 mil), o que corresponde ao
salário de um trabalho em tempo par-
cial, assumido principalmente pelas es-
posas. A outra lei, intitulada “Envio de
trabalhadores em missão”, autoriza o
trabalho temporário, até então proibi-
do. Como os setores relacionados a ela
(13 em 1986, 26 em 1999, sem restrições
desde 2015) são predominantemente
aqueles de empregos femininos, a pre-
cariedade se agrava.
Essa situação revela as contradições
dos discursos oficiais sobre o lugar da
mulher em um contexto de reformas
neoliberais. Quando, em dezembro de
2012, Abe Shinzo, então primeiro-mi-
nistro, apresentou o aumento da taxa de
emprego feminino como um dos pilares
das reformas estruturais para recupe-
rar a economia do país, declarando que
queria “uma sociedade onde as mulhe-
res brilhem”, ele só conseguiu angariar
ceticismo e crítica entre as militantes
feministas, pouco inclinadas a acreditar
em sua repentina conversão.^9

Entretanto, as primeiras reivindica-
ções feministas no Japão datam do fim
do século XIX e versavam sobre o aces-
so à educação e a ampliação de direitos
políticos, como no Ocidente. A moder-
nização da era Meiji (1868-1912) tor-
nou a escola primária obrigatória em
1872, e um decreto de 1886 estipulou a
criação em cada departamento de uma
escola secundária. As universidades,
por outro lado, só abriram suas portas
para as estudantes em 1945, e até 1995
a maioria delas ia para universidades
privadas de ciclo curto de dois anos.
Todos se lembram do escândalo que,
em 2018, abalou a universidade priva-
da de medicina de Tóquio: a instituição
baixava sistematicamente as notas das
candidatas no vestibular.
O movimento pelo direito ao voto foi
ativo desde a adoção da lei sobre o sufrá-
gio “universal” masculino, em 1925, mas
a entrada do Japão na guerra obrigou as
organizações a se dissolverem para in-
tegrar a Associação de Defesa Patriótica
das Mulheres, depois, em 1942, a Asso-
ciação das Mulheres do Grande Japão, à
qual todas as mulheres com mais de 20
anos deveriam se filiar, fazendo recru-
descer a causa feminista.
Apesar das reformas democráticas
do pós-guerra, os obstáculos para o
avanço da igualdade de gênero ainda
são numerosos e diversos. Entre eles, o
quase monopólio do governo pela di-
reita conservadora: o PLD reina no país
desde 1955, exceto por um interlúdio
de dez meses em 1993-1994 e outro de
três anos entre 2009 e 2012, o que con-
tribui para o imobilismo das mentali-
dades e da política.

*Christine Levy é pesquisadora do Centro
de Pesquisa sobre as Civilizações da Ásia
Oriental (CRCAO).

1 Yuzuki Mari, “L’obligation d’atteindre les objec-
tifs de candidatures féminines... abandonnée
à cause de l’opposition du PLD” [Obrigação
de atingir meta de candidaturas femininas
abandonada por oposição do PLD], Tok yo
Shinbun, 19 maio 2021.
2 Em dezoito distritos de eleição uninominal (de
um total de 289) não houve nenhuma candidata.
3 Nakamura Kasane e Ikuta Aya, “Flower demo
ga tsumuida #With you no wa” [A rede #Wi-
thYou tecida pela Manifestação das Flores),
Huffpost Japan, 10 mar. 2020 (em japonês).
4 Ueno Chizuko, Une idéologie pour survivre
[Uma ideologia para sobreviver], Les Presses
du Réel, Paris, 2021.
5 “LDP’s Mio Sugita admits saying ‘women lie’
about sexual assaults” [Mio Sugita, do PLD,
admite ter dito que “as mulheres mentem” so-
bre agressões sexuais], Japan Times, Tóquio,
2 out. 2020.
6 “Mori: talkative women cause time-consuming
meetings” [Mori: mulheres que falam demais
são a causa de reuniões demoradas], The
Asahi Shimbun, Tóquio, 4 fev. 2021.
7 “Suga stops short of calling for Mori to resign
as public sours on Olympic chief” [Suga evita
pedir que Mori renuncie ao cargo de chefe do
Comitê Olímpico, como público exige], Japan
Times, Tóquio, 8 fev. 2021.
8 Programa disponível em: https://cl-p.
jp/2021/02/06/dontbesilent/ (em japonês).
9 Ler Johann Fleuri, “Les Japonaises indésira-
bles au travail” [As japonesas indesejáveis no
trabalho], Le Monde Diplomatique, abr. 2016.

Primeiro-ministro do Japão Fumio Kishida e seus ministros

© Kim Kyung-Hoon/REUTERS
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