Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

4 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


Varoufakis, ministro das Finanças grego,
“foi esmagada como a Primavera de Pra-
ga. Não por tanques, mas por bancos.”
E o inimigo muitas vezes estava den-
tro... Até recentemente, ninguém ima-
ginava um ex-primeiro-ministro traba-
lhista se mudando para o setor privado
e ganhando uma fortuna prestando seus
serviços para o Barclay Bank e para o JP
Morgan, ou um ex-ministro das Finan-
ças socialista se tornando diretor-geral
do FMI. Melhor ainda, foram três socia-
listas franceses ou pessoas próximas a
François Mitterrand que serviram como
arquitetos para a desregulamentação
dos capitais, motor da globalização fi-
nanceira: Jacques Delors, como pre-
sidente da Comissão Europeia, Henri
Chavranski, na Organização para a Coo-
peração e o Desenvolvimento Econômi-
co (OCDE), e Michel Camdessus, como
diretor-geral do FMI. O Ato Único Eu-
ropeu, as parcerias público-privadas, as
privatizações, incluindo a dos meios de
comunicação, foram, portanto, frequen-
temente obra da esquerda. Ao declarar
sua candidatura às eleições presiden-
ciais de 2002, o primeiro-ministro so-
cialista Lionel Jospin chegou a lembrar
que “os interesses dos funcionários” da
France Télécom e da Air France tinham
justificado as aberturas de capital deci-
didas por seu governo. Como mobilizar
politicamente um eleitorado de esquer-
da com tal histórico?
No entanto, as coisas não são mais
fáceis quando a esquerda dominan-
te se recusa a desempenhar o papel de
administradora das políticas de direita.
Há pouco menos de um século, o líder
socialista Léon Blum expressava suas
preocupações às vésperas de uma elei-
ção legislativa que seria vencida pelo
cartel das esquerdas: “Não temos certe-
za de que os representantes e dirigentes
da sociedade atual, em um momento em
que seus princípios essenciais parecem
estar muito ameaçados, não saiam eles
próprios da legalidade”.^4 Blum então te-
mia um golpe. Hoje não há necessidade
de recorrer a isso e mesmo de afastar-se
da legalidade para que os “princípios
essenciais” de uma sociedade capita-
lista continuem a valer, seja qual for a
decisão dos povos interessados. Apenas
quatro dias após a vitória legislativa da
esquerda grega, o presidente da Co-
missão Europeia, Jean-Claude Juncker,
alertava os vencedores da votação: “Não
pode haver escolha democrática contra
os tratados europeus”. Esse trancamen-
to das estruturas e esse sentimento de
que quase tudo se tornou impossível es-
tão agora tão arraigados nos textos e na
mente dos chefes de governo que, quan-
do em novembro de 2021 foi anunciado
ao ministro das Contas Públicas que
90% dos franceses exigiam a eliminação
da taxa de IVA de cinquenta produtos de
primeira necessidade, ele respondeu:
“Teríamos de discutir isso durante anos
com a Comissão Europeia, porque esta-


com frequência por jovens oriundos das
classes médias diplomadas, seduz igual-
mente os meios populares?
Ora, uma reflexão sobre os fracas-
sos da esquerda deve incluir a volta às
alianças de classes que, ao longo do
século XX, lhe permitiram ganhar e
transformar a sociedade. Ela está hoje
aos pedaços. Poderemos reconstruí-la?
Deveremos substituí-la por outra coisa?
Na verdade, a frente das classes médias
progressistas e das camadas populares
se desagregou. Esses dois grupos já não
se entendem, de tal modo que aumen-
taram as segregações espaciais e esco-
lares; eles deixaram de militar juntos
nos partidos políticos agora majorita-
riamente compostos de burgueses com
diplomas e aposentados; não se mobi-
lizam mais nem pelas mesmas causas
nem pelas mesmas prioridades.
Nestes últimos trinta anos, a dissocia-
ção da esquerda e do eleitorado popular
foi atribuída a uma série de fatores: po-
lítico (o rompimento dos compromissos
assumidos), econômico (terceirização,
financeirização, globalização), ideológico
(a hegemonia neoliberal), sociológico (a
celebração da meritocracia pelas classes
cultas), antropológico (a dissolução dos
diferentes estilos de vida na racionalidade
calculista e mercantil), geográfico (as me-
trópoles contra as áreas periurbanas), cul-
tural (lutas societais contra lutas sociais).
Essas explicações clássicas não esboçam
um esquema coerente exceto quando
se levam em conta também duas causas
pouco evocadas: as virtudes moderado-
ras que a “ameaça soviética” exercia sobre
os dirigentes do “mundo livre” capitalista
e a degradação da relação das classes po-
pulares com a política institucional.

© Sarah Meyssonnier/REUTERS

belecer um IVA de 0% não é possível no
contexto das regras atuais. Gostaríamos
de fazê-lo, mas não podemos mais...”.^5
Essa repetitiva invocação de impo-
tência acabou por desacreditar o debate
político. Os partidos, esvaziados de seus
membros (22 mil do Partido Socialista
em 2021, contra quase 200 mil quarenta
anos antes), não aparecem mais como
alavancas de uma eventual mudança,
mas como máquinas eleitorais que es-
timulam o individualismo, as guerras
de dirigentes e os conflitos de egos.
Preocupados em se destacar desse uni-
verso que consideram corrupto, muitos
ativistas estão se voltando para outras
formas de luta, horizontais, inclusivas,
participativas. Assim, os manifestantes
da Primavera Árabe, do Occupy Wall
Street, do Nuit Debout ou os Coletes
Amarelos, todos se recusaram a eleger
líderes (por medo da personalização),
a construir organizações hierárquicas
(para evitar o autoritarismo), a forjar
alianças com partidos ou sindicatos
(por medo de cooptação) ou a partici-
par do jogo eleitoral (assimilado a um
mundo de intrigas e barganhas).
Essa busca de pureza, porém, ocor-
reu em detrimento da eficiência. Em 15
de outubro de 2011, o movimento Oc-
cupy reuniu milhões de pessoas em 952
cidades de 82 países – a maior mobili-
zação planetária da história. Não obteve
nada. Os Coletes Amarelos enfileiraram
dezenas de sábados de passeata – o
mais longo movimento social já visto na
França. Também não obtiveram grande
coisa. E as primaveras árabes? Dez anos
após as concentrações na Praça Tahrir,
no Egito, o país se curvou ao jugo da
ditadura de Abdel Fattah al-Sisi, mais

terrível ainda que a de Hosni Mubarak,
o presidente deposto em 2011. “Os jo-
vens que lideravam esses movimentos
[...] rejeitavam todas as formas de or-
ganização vertical”, explicou Hicham el
Alaoui a propósito da Primavera Árabe.
“Por quê? Após assistir a décadas de cor-
rupção, desconfiavam do sistema po-
lítico, julgavam-no sujo, corrupto. Para
preservar seu idealismo, precisavam
permanecer puros [...]. Mas pressionar
reunindo pessoas na rua é inútil quan-
do a pressão não se traduz num sistema
político. Fica-se marginalizado.”^6 Em
casos assim, a equação é simples: sem
organização, não há influência; sem in-
fluência, não há resultados.
Daí um sentimento de resignação, se
não de fatalismo, e a busca de outros ter-
renos de luta. Se milhões de pessoas atu-
lhando as ruas não conseguem mudar o
mundo, numerosos militantes vão agora
privilegiar alternativas locais, iniciati-
vas concretas capazes de subverter uma
organização social que eles reprovam.
Desse modo, vemos florescer as Zonas a
Defender (ZAD), as comunidades auto-
geridas, os circuitos curtos... No entan-
to, viver à margem do sistema equivale
a aceitar agir na orla, já que não se pode
mudar o essencial. “Não transforma-
mos as relações sociais retirando delas
apenas uns poucos”, observou Frédéric
Lordon.^7 “Uma ilha anticapitalista não
suprime o capitalismo: os ‘continentes’
continuam capitalistas.” E acrescen-
tou: “Contudo, o movimento está em
marcha, o que será de uma utilidade
inestimável desde que, obviamente, ele
prepare uma volta ao continente: a ge-
neralização”. Mas a experiência desses
movimentos do tipo ZAD, promovidos

Manifestantes protestam contra Eric Zemmour, candidato à presidência em 2022. “Paris vai calar a extrema direita”
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