JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 5
Adversário resoluto do marxismo re-
volucionário, Thomas Piketty nem por
isso deixou de reconhecer que “a redu-
ção das desigualdades no século XX está
intimamente associada à existência de
um contramodelo comunista. [...] Gra-
ças à pressão e à ameaça que represen-
tou para as elites proprietárias nos paí-
ses capitalistas, ele contribuiu bastante
para modificar as relações de força e
permitir, nesses países, a emergência de
um regime fiscal, de um regime social e
de um regime de seguridade social que
teria sido muito difícil de impor sem
esse contramodelo”.^8
É que, por mais estranho que isso
possa parecer hoje, a União Soviética de
fato representou durante décadas, em
particular na fração mais militante da
classe operária ocidental, a possibilida-
de concreta de um outro presente e, por-
tanto, de um futuro melhor: uma espe-
rança. Não existe política sem confiança
no futuro, e foi precisamente essa alian-
ça de desejo, ilusão e esperança que de-
sapareceu nos anos 1980, no exato mo-
mento em que a conversão liberal da es-
querda em governo anulava os baluartes
industriais, o que teve por efeito colocar
“fora do jogo” o grupo social que, desde
a década de 1930, ocupava o terreno.^9
A “despolitização”, que comentaristas e
pesquisadores imputam às classes po-
pulares, é apenas o nome com que eles
qualificam a recusa a um jogo no qual
parece que não há nada a ganhar.
O recuo de uns consolida o monopó-
lio de outros. À medida que a proporção
de diplomados em cursos superiores
aumenta (menos de 5% após a guerra;
mais de um terço hoje, na Europa e nos
Estados Unidos), eles se tornam cultu-
ralmente hegemônicos e eleitoralmente
decisivos. Agora, parece-lhes desneces-
sário, para vencer politicamente, forjar
alianças com os outros – o que exige le-
var em consideração suas prioridades.
Nos anos 1950 e 1960, os ricos e os
diplomados votavam na direita, enquan-
to os pobres e os não diplomados vota-
vam na esquerda. Já não é o caso: o título
universitário, isto é, a posição de perito,
de autoridade, de especialista, conduz a
votar na esquerda e às vezes, por reação,
leva quem não é nem perito nem diplo-
mado, e se sente desprezado pelos diplo-
mados e peritos, a gravitar em sentido
contrário.^10 O “modelo norte-americano”
que se impôs é encontrado praticamen-
te em todos os lugares da Europa: cida-
des ricas e intelectuais como Nova York
e São Francisco votam nos democratas.
Estados pobres e rurais como a Virgínia
Ocidental e o Mississippi votam nos re-
publicanos.
Contrariamente à situação de há
trinta ou quarenta anos, porém, as for-
mações de esquerda moderadas – sejam
socialistas, trabalhistas, democratas ou
ecologistas – podem doravante apostar
que vencerão, mesmo negligencian-
do as demandas do eleitorado popular,
caminho diferente. Conclamaram seus
partidários a privilegiar “uma aventura
intelectual”, “um ato de coragem”, “um
radicalismo de verdade”. Hoje, esse con-
selho vale para a esquerda: seu respeito
escrupuloso pelas regras do jogo eco-
nômico e político, instauradas há trinta
anos por seus adversários, sem dúvida a
conduzirá a um novo fracasso. A tríplice
urgência ecológica, social e democrática
reclama, ao contrário, que ao verdadei-
ro “radicalismo liberal”, ora triunfante, e
cuja adoção significaria em última ins-
tância a destruição da sociedade e o “fim
do mundo”, se oponha um radicalismo
inverso. Com a certeza, agora, de que
uma esquerda intelectual e meritocráti-
ca não seja nem igualitária, nem popu-
lar, nem vitoriosa.
Pretendendo fazer de seu país o
“túmulo” do neoliberalismo, se é que
seus atos vão corresponder a seus com-
promissos, o novo presidente chileno,
Gabriel Boric, mostra o objetivo a per-
seguir. Dizer que o caminho será árduo
é redundante. Mas certa vez, quando o
interrogaram sobre seu otimismo ina-
balável, Noam Chomsky respondeu:
“Temos duas escolhas possíveis. Dizer:
sou pessimista, nada dará certo, desis-
to e declaro que o pior acontecerá. Ou
aproveitar as possibilidades que exis-
tem, os raios de esperança, e afirmar
que talvez consigamos construir um
mundo melhor. Na verdade, nem se tra-
ta de uma escolha”.
*Benoît Bréville é da direção e Serge Ha-
limi é diretor do Le Monde Diplomatique.
1 «Questions politiques», France Inter, 21 mar.
2021.
2 Jean-Pierre Chevènement, Qui veut risquer sa
vie la sauvera [Quem quiser arriscar sua vida
a salvará], Robert Laffont, Paris, 2020.
3 Entrevista em L’Humanité, 8 nov. 2019, repu-
blicada em 24 mar. 2020, pouco depois de
sua morte.
4 Léon Blum, “L’idéal socialiste” [O ideal socialis-
ta], La Revue de Paris, maio 1924. Citado em
Jean Lacouture, Léon Blum, Seuil, Paris, 1977.
5 Gerald Darmanin, Le Journal du Dimanche, 7
abr. 2019.
6 “A dissent’s view of the Arab Spring” [Uma
visão discordante da Primavera Árabe], entre-
vista com Hicham el Alaoui, The Harvard Ga-
zette, 23 dez. 2019. Disponível em: http://www.
news.harvard.edu.
7 “Frédéric Lordon: ‘Rouler sur le capital’ [Frédé-
ric Lordon: rolando sobre o capital], Ballast, 21
nov. 2018. Disponível em: http://www.revue-ballast.fr.
8 Conferência nos “Amis d’Huma”, 31 jan. 2020.
9 Stéphane Beaud e Michel Pialoux, “Pourquoi
la gauche a-t-elle perdu les classes populai-
res? ” [Por que a esquerda perdeu as classes
populares?], Savoir/Agir, Vulaines-sur-Seine,
n. 34, dez. 2015.
10 Ver Amory Gethin, Clara Martinez-Toledano e
Thomas Piketty (orgs.), Clivages politiques et
inegalités sociales [Diferenças políticas e de-
sigualdades sociais], Hautes Études-EHESS,
Gallimard, 2020.
11 Dominique Strauss-Kahn, La Flamme et la Cen-
dre [A chama e a cinza], Grasset, Paris, 2002.
12 Libération, Paris, 27 mar. 2001.
13 “Placing priority. How issues mattered more
than demographics in the 2016 election” [Es-
tabelecendo prioridades. Por que os proble-
mas importaram mais que a demografia na
eleição de 2016], Democracy Fund Voter Stu-
dy Group, Washington, dez. 2017.
sobretudo nas eleições das quais este
participa pouco. Estão livres para privi-
legiar um liberalismo cultural e societal
destinado prioritariamente à burguesia
esclarecida. “Perder os operários não é
grave”, concluiu certa vez François Hol-
lande. Charles “Chuck” Schumer, sena-
dor por Nova York, secundou-o em julho
de 2016: “Para cada operário democrata
que perdermos na Pensilvânia ociden-
tal, recuperaremos dois republicanos
moderados nos bairros de Filadélfia”.
Dois anos depois, Donald Trump vencia
na Pensilvânia – e era eleito...
Dominique Strauss-Kahn também
havia recomendado que os socialistas
franceses abandonassem o eleitorado
popular a fim de “ocupar-se de manei-
ra prioritária daquilo que se passa nas
camadas médias de nosso país”. Estra-
tegista brilhante, explicou essa escolha
pouco antes de uma eleição presiden-
cial, a de 2002, em que seu candidato
foi eliminado: “Os membros do grupo
intermediário, constituído em grande
parte de assalariados inteligentes, infor-
mados e educados, formam o arcabou-
ço de nossa sociedade e asseguram sua
estabilidade”. Ora, isso não se aplicava,
em sua opinião, ao “grupo mais desfavo-
recido”, que “quase sempre nem chega
a votar” e “cujas manifestações são por
vezes violentas”.^11
Há vinte anos, os socialistas der-
rotam a direita na eleição municipal
de Paris e perdem mais de vinte cida-
des no interior. Um de seus dirigentes,
Henri Emmanuelli, publicou um artigo
ironicamente intitulado “Quanto custa
a esquerda em metros quadrados?”.^12
E observou: “Agora, a influência da es-
querda plural tenderia a seguir o preço
do metro quadrado, embora lhe tenha
sido, por tradição, inversamente pro-
porcional”. Em 1983 e 1989, com efeito,
Jacques Chirac levou a melhor em cada
um dos vinte distritos da capital. Depois
que dois prefeitos socialistas se sucede-
ram no Hôtel de Ville, o preço do metro
quadrado triplicou.
Simetricamente, a extrema direita,
que obteve em Paris 13,38% dos votos na
eleição presidencial de 1988 – resultado
então comparável ao do resto do país –,
só conservou 4,99% em 2017, sendo em-
bora verdade que, naquele ano, Marine
Le Pen conquistou 21,3% dos sufrágios
em escala nacional, sobretudo graças ao
voto dos operários e assalariados. Em
vista dessa reviravolta sociológica, não é
de admirar que as classes superiores e os
diplomados deem o tom para a esquerda
e definam suas prioridades estratégicas.
Ora, o que conta mais para uns não
é o que conta mais para outros, inclusi-
ve quando apoiam um mesmo partido.
Em 2017, perguntou-se aos operários
norte-americanos que votavam nos de-
mocratas quais eram suas cinco priori-
dades: eles citaram o custo da saúde, o
valor das aposentadorias, o que aconte-
ceria com seus planos de saúde a partir
do momento em que o empregador dei-
xasse de pagá-los, o nível da atividade
econômica e, finalmente, o desemprego.
As cinco prioridades dos diplomados
progressistas – as “classes criativas” dos
jornalistas, artistas, professores, pesqui-
sadores, políticos, leitores do New York
Times, blogueiros, ouvintes das rádios
públicas – eram, pela ordem, o meio
ambiente, a mudança climática, o custo
da saúde, a educação e a justiça racial.^13
Essa dissonância não explica, forço-
samente, a diferença entre moderados
e radicais. Assim, o Partido Trabalhista
britânico amargou um fracasso estron-
doso em 2019, quando seu líder, Jeremy
Corbyn, cedendo à dupla pressão dos
deputados blairistas, que o detestavam,
e dos estudantes radicais, que o apoia-
vam, anunciou que, em caso de vitória,
organizaria um segundo referendo so-
bre o Brexit. Ora, a saída da União Eu-
ropeia, execrada pelas classes médias
diplomadas, tanto moderadas quanto
radicais, fora aceita nas circunscrições
trabalhistas mais populares. A opção
europeia de Corbyn fez que elas corres-
sem para o partido conservador. A lição
é clara: se a esquerda quiser reconquis-
tar o eleitorado que perdeu, deve evitar
os temas de debate mais propensos a
descontentá-lo. A direita, o Twitter e as
mídias já se encarregam disso.
Quando os tempos são difíceis, a
exigência de boas notícias aumenta.
Ora, diante da crise sanitária, as mobi-
lizações que caracterizam uma esquer-
da ofensiva se tornam mais raras, o que
estimula o recolhimento individual, a
saudade dos “bons tempos”, a focali-
zação do debate público nas obsessões
identitárias da extrema direita. Esses
são elementos constitutivos de uma
“política do medo” e, se a esquerda ce-
der a ela, só terá a propor uma defesa
das conquistas do passado ou um re-
mendo eleitoral destinado a evitar que
o pior aconteça. Nessa hipótese, é quase
sempre em torno da proposta mais mo-
derada, mais tímida, menos suscetível
de provocar uma ruptura qualquer com
a ordem existente que a “barragem” se
organiza – Hollande e Macron em vez
de Mélenchon em 2012 e 2017; Hillary
Clinton e Biden em vez de Sanders em
2016 e 2020. Com o risco de ver a água
subir de novo na vez seguinte...
Cansados de travar combates de-
fensivos contra o socialismo do pós-
-guerra, os arquitetos do liberalismo,
como Friedrich Hayek, escolheram um
“A globalização neolibe-
ral é questionada não
pela esquerda, que se
aliou ao social-liberalis-
mo, mas pela chamada
direita ‘populista’”