Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

6 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


O preço da gasolina, que fez os Coletes Amarelos saírem às ruas, nunca havia tido a honra de merecer
reivindicações das organizações de esquerda. Nas classes populares, esse está longe de ser o
único tema que não encontra repercussão política nem sindical...

POR PIERRE SOUCHON*

A QUESTÃO DO CUSTO DE VIDA É CENTRAL


“P


reço da gasolina ou do com-
bustível da luta de classes.”
A propósito da reivindica-
ção inicial dos Coletes
Amarelos, esse subtítulo de uma revis-
ta próxima do Novo Partido Anticapita-
lista (NPA) não apresenta nenhuma
ambiguidade: é como se fosse “Suble-
vação popular no Irã”.^1 Para as revoltas
iranianas do outono de 2019, os comu-
nicados de solidariedade da esquerda
sindical e política francesa f loresce-
ram. Sucedeu o mesmo para a dezena
de mortos estirados nas ruas de Quito e
as centenas de feridos que foram víti-
mas algumas semanas depois no Equa-
dor... da repressão de manifestações
contra o aumento dos preços dos com-
bustíveis. Um ano antes, as mesmas or-
ganizações se rejubilavam com a revo-
lução em marcha no Sudão: poucas
delas se lembraram de que um de seus
prelúdios foi a explosão... desses mes-
mos preços, causadora das insurrei-
ções em junho de 2012 e setembro de


  1. Essa enumeração seria considera-
    da um caso de amnésia se não persis-
    tisse uma data importante na memória
    da esquerda: 27 de fevereiro de 1989,
    em Caracas, foi também o aumento dos
    preços da gasolina, entre outras coisas,
    que provocou o motim popular com
    um saldo de 3 mil mortos e iniciou o
    processo graças ao qual Hugo Chávez
    chegou ao poder algum tempo depois.
    Parece que o apoio maciço da es-
    querda política e sindical francesa às
    revoltas contra os preços na bomba é in-
    versamente proporcional à distância que
    a separa da contestação. Pois, quando o
    mesmo motivo de cólera levou centenas
    de milhares de Coletes Amarelos para as
    ruas da França, em 17 de novembro de
    2018, o NPA subitamente lhes lançou um
    olhar menos tolerante que para as mani-
    festações de Teerã: “Amplamente apoia-
    do pelos empresários do transporte e se-
    cundado pela direita e pela extrema di-
    reita, esse apelo encontra hoje um forte
    eco nos meios populares”.^2 Do lado sin-
    dical, também em vão procuraríamos a
    veia fraterna que irriga os comunicados
    de solidariedade internacional: “Esse


movimento [...] não faz necessariamente
boas perguntas e, portanto, não recebe
necessariamente boas respostas”, ouvi-
mos da boca de um secretário da Confe-
deração Geral do Trabalho (CGT).^3
Todavia... antes que os Coletes Ama-
relos colocassem o preço do combustí-
vel sob os holofotes, bastaria frequentar
qualquer café em qualquer lugar do in-
terior da França para saber que, há uma
boa década, se multiplicavam os ranco-
res e crescia a cólera popular – em torno
de um tema central, o carro. Os radares!
A gasolina! O diesel! A revisão obrigató-
ria! Os impostos! Mas a esquerda sindical
e política mora no campo? Frequenta es-
ses estabelecimentos? E, ainda que fosse
o caso, seria ela capaz de discernir nessas
conversas outra coisa que não a “psica-
nálise de botequim”, praticada em tantos
cafés tediosos que conseguiu se transfor-
mar em provérbio numa expressão estig-
matizada? Os programas dos partidos
para a próxima eleição presidencial res-
pondem: do alto custo do automóvel não
se fala, mas se repisa que é preciso “sair”
do mundo do transporte poluidor (“re-
pensar a mobilidade individual”,^4 “redu-
zir o espaço do automóvel”,^5 “privilegiar
os deslocamentos não motorizados”).^6
Fora o preço dos transportes, o que
interessa politicamente às classes popu-
lares? Uma coisa é certa: a “política poli-
tiqueira” (lutas do poder, estratégias elei-
torais...) lhes interessa pouco ou nada,
o que se pode verificar pelas taxas de
abstenção a cada pleito. Não será justa-
mente porque suas inquietações e seus
tormentos são desconhecidos, ou quase,
das organizações que pretendem falar
em seu nome? Interrogamos umas trinta
pessoas das classes populares: emprega-
das domésticas, babás, operárias, enca-
nadores, azulejistas... Mulheres, em sua
maioria, jovens, menos jovens e aposen-
tadas, oriundas de diferentes meios pro-
fissionais e de diversos lugares geográfi-
cos (urbanos, rurais, periurbanos).
Primeira surpresa: uma maioria ín-
fima entre elas afirmou sonhar com au-
mento de salário, a obsessão das orga-
nizações de esquerda. No entanto, todas
insistiram no custo de vida, que só au-

menta. Em se tratando de casais, são ge-
ralmente as mulheres que se encarregam
das contas. Devoradora de tempo e fonte
de angústias múltiplas, essa atividade
que elas desempenham com precisão
faria empalidecer de vergonha qualquer
contador. As mulheres são comparado-
ras impiedosas de preços – no grande e
no pequeno comércio –, manipuladoras
austeras de percentagens – altas, baixas
–, profissionais da minúcia: não estamos
exagerando. Sua cólera se volta contra os
preços do cotidiano, do imediato, da bol-
sa que elas abrem todos os dias pensan-
do nisso. Sua exigência é clara: o tabela-
mento rigoroso dos preços dos produtos
de primeira necessidade. Poder encher a
geladeira sem, por assim dizer, pensar no
assunto, sem comparar, sem consultar
etiquetas, sem passar horas extenuantes
de pesquisa na internet. Aumentar salá-
rios? “Tudo aumentaria logo em seguida
e não ganharíamos nada!” Lembremos
que os preços só foram liberados na
França em 1987... Ao tabelamento dos
preços dos gêneros básicos, as pesquisas
acrescentaram a limitação das contas de
gás, eletricidade, planos de saúde etc. –
para que cesse a onipresente “angústia
da caixa de correspondência”.
Segunda surpresa: a escola. As or-
ganizações sindicais e políticas tecem
em geral seus discursos em torno dos
meios que faltam a esse serviço público.
As pessoas que conhecemos nem falam
nisso. Em contrapartida, todas se mos-
tram absolutamente furiosas... com os
preços da escola. Ela é cara, exorbitante:
creches, centros de lazer, cantinas, ma-
terial escolar e excursões engolem lite-
ralmente o orçamento dessas famílias.
São sobretudo despesas extracurricula-
res, mas as pesquisas as incluem, ainda
assim, em um exorbitante quadro de
gastos “escolares”. Vale dizer que o dis-
curso sobre o orçamento da educação
nacional não é ouvido, tanto mais que
vem acompanhado, no caso da esquer-
da, de uma advertência: “Caminhamos
para uma escola à americana”. As crian-
ças das classes populares já estão lá – e
nem falam de seu futuro, que percebem
extremamente sombrio: “Se os peque-

nos forem além do secundário, não será
possível pagar seus estudos”.

UMA ORGANIZAÇÃO
COM GENTE COMO A GENTE
No entanto, as crianças das classes po-
pulares não se dedicam somente ao
estudo: divertem-se também – muitas
vezes prolongando as atividades para
as quais a escola as sensibilizou. E en-
tão esbarram no mesmo muro, o do
dinheiro. Esportes, cinemas, teatros,
bibliotecas: todos os lazeres estão “fora
de alcance”. Na tela dos celulares, dos
computadores, nas folhas brancas e
nos cadernos de anotações dançam as
vírgulas e incide o mesmo veredicto:
proibição do divertimento por causa do
preço muito alto. Um vínculo direto se
estabelece com a onipresença das telas:
“Não se pode sair, é caro demais. Assim,
pegamos uma tela plana e entregamos
os fedelhos aos joguinhos e à Netflix...”
De resto, colocar a questão do traba-
lho equivale aqui a falar de problemas
musculoesqueléticos, de artrose, de
lombalgias, de hérnias de disco, de cal-
cificações, de lumbagos, de deficiências
parciais ou permanentes... O trabalho
manual, onipresente entre esses assala-
riados, acaba com o corpo. Com todos
os corpos, inclusive os jovens. A reivin-
dicação também é tão unânime quanto
ausente dos programas das organiza-
ções de esquerda: o alinhamento da re-
muneração do trabalho manual com o
trabalho intelectual e carreiras mais cur-
tas para as profissões penosas: “Como
no Exército ou na polícia, pois não pode-
mos ir muito longe”. O resto é visto como
medidas paliativas: “Sua aposentadoria
com 60 anos é uma farsa; com 50 anos
já estão acabados”. Pedir aposentadoria,
além disso, é uma via-sacra administra-
tiva; constitui o dia a dia daqueles e da-
quelas que diariamente devem se enve-
redar pelo labirinto das “ajudas sociais”.
Surge e ressurge então um pedido: que
essas “ajudas sociais” de todos os tipos
sejam concedidas de maneira tão auto-
mática quanto a dedução das somas que
as diferentes instituições fazem na conta
bancária dessas famílias em situação de

O que a esquerda não


percebe nas classes populares

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