8 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022
Os limites da renovação
O campo progressista parece muitas vezes atolado por seus jargões, esmagado
pelos seus ícones. Entretanto, simplesmente “fazer algo novo” não é o suficiente
para vencer. E mostrar-se “menos militante” pode significar abrir mão de um
apoio crucial no momento em que a disputa política começar
POR MAËLLE MARIETTE*, ENVIADA ESPECIAL
PODEMOS NA ESPANHA
E
m 2014, um novo partido político
espanhol chegou para “tomar o
céu de assalto”, uma frase empres-
tada de Karl Marx: o Podemos. Ele
reunia ex-universitários que marcha-
vam sob o grito de “desobediência” no
refeitório da universidade, em 2006, co-
mo Íñigo Errejón e Pablo Iglesias; o che-
fe da livraria cooperativa Marabunta e
porta-voz do pequeno partido de extre-
ma esquerda Izquierda Anticapitalista,
Miguel Urbán; e, principalmente, mili-
tantes oriundos do grande movimento
social dos Indignados de 2011, às vezes
reunidos em estruturas de luta contra a
austeridade, coletivos organizados
contra os despejos ou organizações fe-
ministas. Seu projeto: tomar o poder re-
legando os partidos tradicionais aos li-
vros de história.
Seis anos depois, vários membros do
Podemos, incluindo Iglesias, ocupam
diferentes ministérios, bem como a vi-
ce-presidência do governo do socialista
Pedro Sánchez. Nesse ínterim, os Anti-
capitalistas romperam sua aliança com
o Podemos, e Errejón, que era o número
dois do partido, saiu para fundar outras
formações políticas, mais moderadas.
Como explicar essa mudança? E que li-
ções podemos tirar dela?
Quinze de maio de 2011. Milhares de
pessoas ocupam as praças das principais
cidades da Espanha em reação à crise
desencadeada pelo estouro da bolha
imobiliária e pelas políticas de austerida-
de que ela justificou. Esses “indignados”
abalam os pilares do sistema político es-
panhol, a começar pelo bipartidarismo
entre o Partido Popular (PP) e o Partido
Socialista Operário Espanhol (Psoe).^1
INSTITUCIONALIZAR A INDIGNAÇÃO
Para os fundadores do Podemos, o le-
vante revelava a crise do “regime de 78”
- em referência à Constituição de 1978,
resultante da transição pós-franquista e
fundada sobre a ideia de que os antago-
nismos de ontem e as feridas do passado
poderiam ser afogados em crescimento e
abundância. “Uma janela de oportunida-
de” acaba de se abrir, explicava Errejón:
“Há condições para uma nova maioria
política, transversal, de ruptura, oriunda
da maioria social atingida pela crise”.^2 Fa-
zer frutificar esse descontentamento de
múltiplas raízes e “conferir à indignação
uma força institucional” (título do ma-
nifesto original do Podemos) implicava,
segundo os futuros dirigentes do partido,
ir além da horizontalidade do movimen-
to dos Indignados. Em outros termos,
transformar as demandas do movimento
15 de Maio (15M) em um projeto estrutu-
rado e capaz de unir atores para além do
“campo progressista”; expor esse projeto
abrindo mão de jargões; e promovê-lo
por meio de um partido capaz de se en-
gajar na luta pelo poder.
Enquanto o termo “esquerda” estava
associado ao Psoe e aos escândalos de
corrupção que o atormentavam quase
tanto quanto ao PP, o Podemos abando-
nou a dicotomia esquerda/direita para
promover outra. De um lado, a oligar-
quia econômica (e os líderes políticos
que servem a ela); de outro, aqueles que
sofrem com o sistema. De um lado, a
“casta”; de outro, “o povo”. De um lado,
“eles”; de outro, “nós” – uma aplicação
da “hipótese populista”, que os líderes
do Podemos extraíram das teorias de
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, seus
referenciais ideológicos desde suas res-
pectivas experiências em diversos países
latino-americanos: durante os períodos
de grande crise, haveria descontenta-
mentos diversos e às vezes não relacio-
nados (e até mesmo contraditórios),
emanados de camadas heterogêneas da
sociedade, os quais uma mesma figura
política conseguiria unificar para derru-
bar um regime obsoleto.^3
“O único ponto de partida conce-
bível hoje para uma esquerda realista
é tomar consciência da [sua] derrota
histórica”, observara o intelectual britâ-
nico Perry Anderson.^4 O Podemos acre-
ditava ter tirado todas as conclusões da
análise. “O colapso do bloco soviético e
o desmoronamento da base social dos
partidos comunistas europeus foram
acompanhados da desqualificação sim-
bólica das grades de leitura marxistas e
do imaginário comunista”, explica Juan
Carlos Monedero, um dos fundadores
do Podemos, professor de Ciência Po-
lítica da Universidade Complutense de
Madri, assim como Errejón e Iglesias.
Mobilizar os códigos da esquerda radi-
cal tradicional – por exemplo, agitando
bandeiras com a foice e o martelo, evo-
cando a nacionalização das empresas ou
questionando a monarquia – equivaleria
então a endossar um estigma contrapro-
ducente. “Quando o adversário nos qua-
lifica como ‘esquerda radical’ e nos mar-
ca com seus próprios símbolos”, analisa
Iglesias, “ele nos leva para um terreno
onde sua vitória é mais fácil. Contestar
a distribuição simbólica das posições,
brigar pelos ‘termos da conversa’ é nos-
sa tarefa mais importante. Em política,
quem decide os termos da disputa deci-
de em grande parte seu resultado.”^5
Nessa perspectiva, o Podemos acre-
ditava que os debates televisionados
eram “mais importantes do que os deba-
tes no Parlamento”^6 – sobretudo porque,
na era da sociedade da informação, “as
pessoas militam mais na mídia do que
nos partidos”.^7 Em 2010 foi criado o pro-
grama de televisão La Tuerka, concebi-
do como um dispositivo de “contra-he-
gemonia cultural”. Nele, toda semana a
equipe debatia com representantes po-
líticos de todos os matizes, aprimorando
sua estratégia de comunicação. “O pro-
grama La Tuerka e depois o Podemos
fizeram tudo o que a esquerda disse que
não deveria ser feito”, explicava Iglesias
em 2015. “A esquerda dizia que a televi-
são torna as pessoas estúpidas; que em
um debate político televisionado não
é possível apresentar adequadamente
seus argumentos e seria preferível fa-
zer exposições de meia hora; que não se
deve focar a estratégia nesse tipo de for-
mato televisivo”.^8 “Em 2014 e em 2015,
fomos nós que definimos a agenda po-
lítica”, completa Jorge Moruno, que por
muito tempo foi responsável “pelo dis-
curso e pelo argumentário” do Podemos
e hoje é deputado da Comunidade de
Madri pelo partido Más Madrid. “Eram
tanto os temas de que falávamos – cor-
rupção, renovação da classe política,
questões sociais etc. – como a forma de
falar sobre eles. E foi muito complicado
para os outros partidos se posicionar so-
bre as questões que levantávamos.”
Graças ao sucesso do La Tuerka – que
começou sendo transmitido por um ca-
nal de televisão comunitário de bairro,
passando depois para um canal nacional
- e aos convites recebidos para outros
programas, Iglesias se tornou a figura de
mídia do Podemos. “Como esperado!”,
comemora Errejón: “A liderança midiá-
tica de Pablo [Iglesias] é uma importan-
te ferramenta de construção. [...] É algo
que aprendemos analisando a forma
como se deram as recentes mudanças
políticas na América Latina. [...] Diante
do colapso das referências coletivas, das
bandeiras, dos partidos e dos símbolos,
é com um nome próprio que as pessoas
conseguem se identificar”.^9 Essa estraté-
gia de personificação levanta objeções
dentro do movimento, mas muitos ad-
mitem que impulsionou o partido. Essa
capacidade de reunir apoios também se
explica pelo fato de que “Pablo [Iglesias]
se definia mais em função de quem ata-
cava, daquilo a que se opunha, do que
daquilo que propunha. Ele era contra
a casta, contra a corrupção...”, explica
Jorge Lago, um dos fundadores do Pode-
mos, além de professor de Ciência Políti-
ca. “Indignados muito diferentes, todos
oriundos do 15M, puderam se sentir re-
presentados por ele.”^10
Em maio de 2014, cinco meses após
sua criação, o partido surpreendeu ao