Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

— Como você sabe o dia do meu aniversário?
Como não tinha calendário, ela não fazia ideia de que fosse naquele dia.
— Eu li na sua Bíblia.
Enquanto ela lhe implorava para não cortar no meio do seu nome, ele fatiou o
bolo em pedaços imensos e os serviu em pratos de papel. Encarando-se, os dois
partiram pedaços com a mão e foram enfiando na boca um do outro. Estalaram os
lábios bem alto. Lamberam os dedos. Sorriram exibindo as bocas sujas de glacê.
Comeram bolo como bolo deve ser comido, do jeito que todo mundo quer
comer.
— Quer abrir seus presentes?
Ele sorriu.
O primeiro: uma pequena lupa, “para você ver os detalhes das asas dos
insetos”. O segundo: uma presilha de plástico, pintada de prateado e enfeitada
com uma gaivota de cristal, “para o seu cabelo”. Com gestos um pouco
desajeitados, ela pôs algumas mechas atrás da orelha e colocou a presilha no lugar.
Encostou nela. Mais bonita do que a de Ma.
O último presente estava numa caixa maior, e ao abri-la Kya encontrou dez
vidrinhos de tinta a óleo, latinhas de aquarela e pincéis de diferentes tamanhos.
Pegou cada cor, cada pincel.
— Posso trazer mais quando você precisar. Até tela eu posso trazer, de Sea
Oaks.
Ela baixou a cabeça.
— Obrigada, Tate.


*


— Calma. Devagar agora — instruiu Scupper, enquanto Tate, cercado por redes
de pesca, panos sujos de óleo e pelicanos grasnando, girava a manivela.
A proa do The Cherry Pie bateu no suporte, estremeceu de leve, então deslizou
para o trilho submerso do Pete’s Boat Yard, a única oficina de barcos de Barkley
Cove, formada por um cais torto e uma casa de barcos enferrujada.
— Ótimo, encaixou. Pode tirar da água.
Tate girou a manivela com mais força, e o barco subiu devagar os trilhos até
sair da água. Eles o prenderam com cabos e começaram a raspar cracas acumuladas
no casco enquanto árias cristalinas de Miliza Korjus vinham da vitrola. Teriam de
passar zarcão, em seguida a demão anual de tinta vermelha. Quem escolhera a cor
fora a mãe de Tate, e Scupper nunca iria mudá-la. De vez em quando, ele parava
de raspar e mexia os braços grandes ao ritmo sinuoso da música.
Era o início do inverno, e Scupper pagava a Tate um salário de adulto pelo seu
trabalho depois da escola e nos fins de semana, mas o menino não conseguia mais
visitar Kya com tanta frequência. Não comentou isso com o pai; nunca tinha
mencionado nada sobre Kya com o pai.
Eles ficaram raspando cracas até escurecer e os braços de Scupper arderem.
— Estou cansado demais para cozinhar, e acho que você também deve estar.

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