Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

dias depois. Estava louco para se desculpar com Kya, que iria entender quando
soubesse do convite do Dr. Blum.
Ele havia desacelerado ao sair do mar e virar no canal, onde os cascos
reluzentes das tartarugas tomando sol faziam fila nos troncos. Quase no meio do
caminho, viu o barco dela escondido com cuidado no meio do capim-da-praia
alto. Na mesma hora, diminuiu a velocidade e a viu mais à frente, ajoelhada num
banco de areia largo, parecendo fascinada por algum pequeno crustáceo.
Com a cabeça bem próxima ao chão, ela não o vira nem ouvira seu barco se
aproximar lentamente. Ele manobrou em silêncio para o meio dos juncos, fora do
campo de visão dela. Sabia que por anos Kya às vezes o espionava por entre
arbustos espinhosos. Por impulso, iria fazer o mesmo.
Descalça, usando uma calça jeans cortada e uma camiseta branca, ela se
levantou e esticou os braços bem alto. Deixando à mostra a cintura bem fina.
Tornou a se ajoelhar e pegou um pouco de areia nas mãos, deixando-a escapar
entre os dedos, e examinou as criaturas que se remexiam na palma. Ele sorriu para
a jovem bióloga absorta e distraída. Imaginou-a em pé atrás do grupo de
observadores de pássaros, tentando não ser notada, mas sendo a primeira a detectar
e identificar cada ave. Tímida e suavemente, teria listado a espécie exata de capim
que formava cada ninho, ou a idade em dias de um filhote fêmea com base nas
cores que despontavam das asas. Minúcias assombrosas, além do alcance de
qualquer manual ou de qualquer conhecimento do célebre grupo de ecologistas.
Os mais ínfimos detalhes que compõem uma espécie. A essência.
Tate levou um susto quando Kya de repente se levantou com um pulo,
deixando a areia escorrer dos dedos, e olhou correnteza acima, na direção oposta à
que ele estava. Mal se escutava o ronco grave de um motor de popa vindo na
direção deles, certamente um pescador ou morador do brejo a caminho da cidade.
Um ronronar, habitual e calmo como pombas. Mas Kya agarrou a mochila,
atravessou correndo o banco de areia e passou no meio do mato alto. Acocorada
bem rente ao chão e lançando olhares furtivos para descobrir se o barco havia
entrado no seu campo de visão, ela recuou encolhida até a própria embarcação.
Seus joelhos quase batiam no queixo. Agora estava mais perto de Tate, e ele viu
seus olhos escuros e ensandecidos. Chegando ao barco, ela se agachou junto à
lateral com a cabeça baixa.
O pescador — um velho de rosto alegre e chapéu — apareceu com seu motor
engasgando e não viu Kya nem Tate, então fez a curva e sumiu. Mas ela
permaneceu petrificada, escutando até o motor morrer ao longe, antes de
finalmente se levantar e enxugar a testa. Continuou olhando na direção do barco
feito um cervo fitando a selva deserta após uma pantera se afastar.
De certo modo ele sabia por que ela se comportava assim, mas desde o jogo
das penas não havia testemunhado aquele âmago sensível, em carne viva.
Atormentado, isolado e estranho.
Fazia menos de dois meses que estava na faculdade, mas já dera um passo no
mundo que desejava, analisando a simetria espantosa da molécula de DNA como
se tivesse rastejado para dentro de uma catedral cintilante de átomos enrolados e
escalado os níveis sinuosos e ácidos da hélice. Vendo que toda vida dependia

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