Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

primeira vez na vida.
No início, sentava-se e espiava a tela a cada poucos minutos. Tentando ouvir
passos na mata. Conhecia o formato de todas as árvores; mesmo assim, algumas
pareciam se mexer aqui e ali, movimentando-se com a lua. Durante algum
tempo, ela ficou tão rígida que nem conseguia engolir, mas na hora certa as
canções conhecidas dos sapos e grilos dominaram a noite. Mais reconfortante do
que uma canção de ninar. A noite tinha um cheiro doce, o hálito terroso dos
sapos e das salamandras que sobreviveram a mais um dia de calor forte. O brejo se
aconchegou mais para perto junto com uma névoa baixa, e ela dormiu.


*


Por três dias Pa não apareceu, e Kya cozinhou folhas de nabo da horta de Ma para
o café da manhã, o almoço e o jantar. Tinha ido ao galinheiro pegar ovos, mas o
encontrara vazio. Nenhuma galinha ou ovo em lugar algum.
— Suas galinhas covardes! Vocês são um bando de covardes!
Ela vinha pensando em cuidar das galinhas desde que Ma fora embora, mas não
fizera grande coisa. Agora elas tinham fugido e virado um bando heterogêneo
cacarejando nas árvores atrás do galinheiro. Ela precisaria jogar milho para tentar
mantê-las por perto.
No início da noite do quarto dia, Pa apareceu com uma garrafa e se
esparramou na cama.
Na manhã seguinte, ao entrar na cozinha, berrou:
— Onde todo mundo se meteu?
— Não sei — respondeu ela sem olhar para ele.
— Você não sabe porcaria nenhuma. Não serve para nada.
Kya saiu de fininho pela porta da varanda, mas enquanto andava pela praia
tentando catar mariscos sentiu cheiro de fumaça, e ao erguer os olhos viu uma
coluna de fumaça subindo do barracão. Correndo o mais depressa que podia,
irrompeu do meio das árvores e encontrou uma fogueira acesa no quintal. Pa
estava jogando os desenhos, vestidos e livros de Ma no fogo.
— Não! — gritou Kya.
Ele não olhou para ela, mas tacou o velho rádio a pilha no fogo. Ela sentiu o
rosto e os braços queimarem ao estender as mãos na direção dos quadros, mas o
calor a empurrou para trás.
Ela correu até o barracão para impedir Pa de buscar mais coisas e fixou o olhar
no seu. Pa ergueu as costas da mão para Kya, mas ela não arredou pé. De repente,
ele se virou e mancou até o barco.
Kya afundou na escada de tijolo e tábuas, vendo as aquarelas do brejo pintadas
por Ma se consumirem e virarem cinzas. Ficou sentada até o sol se pôr, até todos
os botões reluzirem como carvões em brasa e as lembranças de dançar jitterbug
com Ma derreterem nas chamas.
Ao longo dos dias seguintes, Kya aprendeu com os erros dos outros, e talvez
mais ainda com os peixinhos, a viver com ele. Era só ficar fora do caminho, não

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