deixar que ele a visse, correr depressa das poças de luz para dentro das sombras.
Ela se levantava e saía de casa antes de ele acordar, ia morar na mata e na água,
depois voltava na ponta dos pés para casa e ia dormir em sua cama na varanda, o
mais perto do brejo que conseguia chegar.
*
Pa havia lutado na Alemanha na Segunda Guerra Mundial, onde tivera o fêmur
esquerdo atingido e esmigalhado por estilhaços, seu último motivo de orgulho.
Os cheques semanais pelo ferimento de guerra eram sua única fonte de renda.
Uma semana depois de Jodie ir embora, a geladeira estava vazia e quase não
restavam mais nabos. Quando Kya entrou na cozinha naquela segunda-feira de
manhã, Pa apontou para uma nota amarfanhada de um dólar e algumas moedas na
mesa da cozinha.
— Isso aqui é comida da semana. Nada é de graça nessa vida — disse ele. —
Tudo tem um custo, e por esse dinheiro você vai ter que cuidar da casa, catar
lenha e lavar roupa.
Pela primeira vez na vida, Kya foi sozinha até o povoado de Barkley Cove
para fazer compras — este porquinho aqui foi ao mercado. Andou mais de seis
quilômetros pela areia funda ou pela lama negra até ver a baía cintilante mais à
frente e a cidadezinha à margem.
Mangues cercavam a cidade e misturavam sua névoa salgada à do oceano, que
subia na maré cheia do outro lado da rua principal. Juntos, brejo e mar separavam
o vilarejo do resto do mundo, e a única ligação era a estrada de mão e contramão
que mancava cidade adentro toda feita de cimento rachado e buracos.
Eram duas ruas: uma delas, chamada Main, tinha uma sequência de lojas que
margeava o mar; numa das pontas ficava o armazém Piggly Wiggly, na outra a
Western Auto, e no centro ficava o restaurante. Em meio a tudo isso havia a loja
de quinquilharias Kress Five and Dime, uma Penney’s (venda por catálogo
apenas), a padaria Parker’s e uma sapataria Buster Brown. Ao lado do armazém
ficava a Cervejaria Dog-Gone, que vendia cachorros-quentes com salsicha na
brasa, chili picante e camarões fritos servidos em barquinhos de papel dobrado.
Nem mulheres nem crianças entravam lá porque não era considerado adequado,
mas uma janelinha tinha sido aberta na parede para elas poderem pedir da rua os
cachorros-quentes e refrigerantes. Negros não podiam usar nem a porta nem a
janelinha.
A outra rua, chamada Broad, ia da estrada antiga direto até o mar e cruzava a
Main, onde acabava. Assim, o único cruzamento da cidade era entre Main, Broad
e o Oceano Atlântico. As lojas e os comércios não ficavam todos juntos como na
maioria das cidades; eram separados por pequenos terrenos baldios tomados pelo
arroz de costa e pelos palmeirais, como se da noite para o dia o brejo tivesse
invadido. Por mais de duzentos anos, ventos cortantes e salgados haviam
desbotado as construções feitas de telhas de cedro até deixá-las cor de ferrugem, e
as molduras das janelas, a maioria pintada de branco ou azul, estavam descascadas