Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

empadão que conseguiu dentro da caixinha, tomando cuidado para ninguém ver,
e enrolou a caixinha e o pão no guardanapo.
Passou o resto do dia sem abrir a boca. Mesmo quando a professora lhe fez
uma pergunta, ficou sentada, muda. Achava que devia aprender com eles, não eles
com ela. Por que me expor para os outros rirem de mim?, pensou.
No último sinal, disseram-lhe que o ônibus a deixaria a cinco quilômetros da
estradinha da sua casa porque o caminho a partir dali era arenoso demais, e que
ela teria de andar até o ônibus todos os dias. Voltando para casa, enquanto o
ônibus se balançava sobre grandes sulcos e passava por trechos de capim-da-praia,
um cântico emanou lá da frente:
— SRTA. Catherine Danielle Clark! — gritaram Louraaltaemagra e
Gordinhaebochechuda, as meninas do almoço. — Galinha do brejo! Ratinho do
pântano!
O ônibus finalmente parou num cruzamento não sinalizado de vários
caminhos emaranhados bem lá no fundo da mata. O motorista abriu a porta, e
Kya saltou depressa e correu por quase um quilômetro, parou para recuperar o
fôlego, depois retomou uma corrida mais lenta até chegar à estradinha da sua casa.
Não parou no barracão; passou às carreiras pelo meio do palmeiral até a lagoa e
desceu a trilha que percorria o meio dos carvalhos densos e altos até o mar.
Chegou à praia árida onde o oceano aguardava de braços bem abertos, e o vento
forte soltou seu cabelo trançado quando ela parou na beira d’água. Estava
prendendo o choro como fizera o dia inteiro.
Mais alto do que o rugido das ondas, Kya gritou para os pássaros. O timbre do
mar era baixo; o das gaivotas, soprano. Aos gritos estridentes, elas ficaram voando
em círculos acima do brejo e da areia enquanto Kya jogava a massa de empadão e
os pãezinhos na praia. Com as pernas dependuradas e virando as cabeças,
pousaram.
Alguns dos pássaros começaram a bicá-la de leve entre os dedos dos pés, e as
cócegas a fizeram rir até as lágrimas escorrerem pelo seu rosto, liberando por fim
imensos soluços entrecortados daquele lugar apertado depois da garganta. Quando
a caixinha de leite ficou vazia, ela achou que não fosse suportar a dor, tamanho
seu medo de que as gaivotas a abandonassem como todos os outros. Mas as aves
pousaram na praia à sua volta e puseram-se a limpar as asas cinza abertas. Ela então
sentou-se também e desejou poder reuni-las e levá-las consigo para dormir na
varanda. Imaginou todas reunidas na sua cama, um bolo macio de corpos quentes
e emplumados sob as cobertas.
Dois dias depois, ela ouviu o Ford Crestliner revirar a areia e correu para
dentro do brejo, pisando firme nos bancos de areia e deixando pegadas claras
como o dia, depois entrando na água na ponta dos pés sem deixar rastros, dando
meia-volta e seguindo em outra direção. Quando chegou à lama, correu em
círculos para criar uma confusão de pistas. Então, ao alcançar a terra firme, passou
sobre ela feito um sussurro, pulando de tufos de vegetação para gravetos sem
deixar vestígio.
Nas semanas seguintes eles continuaram aparecendo de dois em dois ou de três
em três dias, e o homem do chapéu de feltro efetuava a busca e a perseguição,

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