Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

mas nunca chegava perto. Até que numa semana ninguém apareceu. Houve
apenas o grasnar dos corvos. Kya deixou as mãos caírem junto ao corpo e ficou
encarando a estradinha deserta.
Ela nunca mais retornou à escola na vida. Voltou a observar as garças e a
colecionar conchas, atividades com as quais achava que podia aprender alguma
coisa.
— Eu já sei arrulhar que nem um pombo — falou para si mesma. — E muito
melhor que eles. Mesmo com todos aqueles sapatos elegantes.


*


Certa manhã, algumas semanas depois do seu dia na escola, o sol brilhava branco e
quente quando Kya subiu na casa da árvore de seus irmãos na praia e ficou
procurando barcos a vela com bandeiras de caveiras e ossos cruzados. Provando
que a imaginação brota nos terrenos mais estéreis, gritou:
— Ei! Ei, piratas! — Brandindo a espada, pulou da árvore para atacar. De
repente, sentiu uma dor no pé direito que subiu feito fogo pela perna. Seus
joelhos perderam a força, ela caiu de lado e guinchou. Viu um prego comprido e
enferrujado cravado bem fundo na sola do seu pé. — Pa! — gritou. Tentou
lembrar se ele tinha voltado para casa na noite anterior. — Pa, SOCORRO! —
chamou, mas não houve resposta.
Com um movimento rápido, estendeu a mão e arrancou o prego, berrando
para mascarar a dor. Moveu os braços pela areia em gestos sem sentido,
choramingando. Por fim, sentou-se e examinou a sola do pé. Quase não havia
sangue, apenas o furo minúsculo de um ferimento pequeno e fundo. Foi nessa
hora que se lembrou do tétano. Sentiu um aperto no estômago e ficou com frio.
Jodie tinha lhe contado sobre um menino que havia pisado num prego sem ter
tomado a vacina. O maxilar do garoto tinha travado, fechado com tanta força que
ele não conseguia abrir a boca. Depois sua coluna havia se retesado para trás feito
um arco, e ninguém pôde fazer nada a não ser ficar ali parado vendo ele se
contorcer até a morte.
Jodie fora muito claro num detalhe: era preciso tomar a vacina no máximo
dois dias depois de pisar num prego, senão era o fim. Kya não fazia ideia de como
tomar uma vacina dessas.
— Tenho que fazer alguma coisa. Se esperar Pa, com certeza vou ter tétano.
Com o suor a escorrer em gotas pelo rosto, ela atravessou a praia cambaleando
até finalmente chegar aos carvalhos mais frescos em volta do barracão.
Ma costumava embeber os machucados em água com sal e cobri-los com
compressas de lama misturada com todo tipo de poção. Como não havia sal na
cozinha, Kya entrou mancando na floresta e foi até uma vala de água salobra que,
na maré baixa, ficava tão salgada a ponto de cristais brancos reluzirem nas bordas.
Sentou-se no chão e mergulhou o pé na salmoura do brejo enquanto mexia a
boca sem parar: abre, fecha, abre, fecha, bocejos de mentira, movimentos de
mastigação, qualquer coisa para impedir a boca de travar. Depois de quase uma

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