Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

hora, a maré recuou o suficiente para ela cavar com os dedos um buraco na lama
preta, então ela delicadamente enfiou o pé no solo sedoso. O ar ali estava fresco, e
os gritos das águias a amparavam.
No fim da tarde, como já estava com muita fome, ela voltou para o barracão.
O quarto de Pa continuava vazio, e ele provavelmente ainda demoraria horas para
chegar. Jogar pôquer e beber uísque mantinham um homem ocupado durante a
maior parte da noite. Não havia mingau, mas ela revirou a casa até encontrar uma
embalagem velha e engordurada de margarina Crisco, então pegou um pedacinho
da gordura branca e a passou num biscoito de água e sal. Primeiro deu uma
mordidinha, depois comeu mais cinco.
Subiu na sua cama na varanda, atenta ao barulho do barco de Pa. A noite
chegou repleta de barulhos e movimentos, e o sono veio por partes, mas ela deve
ter dormido quase de manhã, pois acordou com o sol já forte no rosto. Abriu
rapidamente a boca: ainda estava funcionando. Ficou indo e voltando entre a vala
de água salobra e o barracão até saber, pelo movimento do sol, que dois dias
tinham se passado. Abriu e fechou a boca. Talvez tivesse conseguido.
Nessa noite, ao se enfiar sob os lençóis do colchão no chão, com o pé coberto
de lama enrolado num trapo velho, ela se perguntou se acordaria morta. Não,
lembrou, não seria tão fácil assim: suas costas se arqueariam; seus membros se
contorceriam.
Alguns minutos depois, sentiu uma fisgada na base das costas e sentou-se.
— Ah, não, ah, não. Ma, Ma. — A sensação nas costas se repetiu e a fez se
calar. — É só uma coceira — sussurrou ela.
Por fim, realmente exausta, ela dormiu, e só abriu os olhos quando os pombos
já arrulhavam no carvalho.
Passou uma semana indo à vala duas vezes por dia, vivendo à base de biscoitos
e margarina, e durante todo esse tempo Pa não apareceu em casa. No oitavo dia,
já conseguia girar o pé sem rigidez e a dor se limitava à superfície. Ela fez uma
dancinha levantando o pé do chão, guinchando:
— Eu consegui, eu consegui!
Na manhã seguinte, tomou o rumo da praia para encontrar mais piratas.
— A primeira coisa que vou fazer é mandar minha tripulação catar todos os
pregos.


*


Ela acordava cedo todo dia de manhã, ainda esperando o tumulto de Ma atarefada
na cozinha. A comida preferida de Ma para o café da manhã eram ovos das
próprias galinhas mexidos, tomates vermelhos maduros fatiados e bolinhos de
milho de frigideira preparados com uma massa de fubá, água e sal e despejados
numa gordura tão quente que a mistura borbulhava e as bordas fritavam até virar
uma renda crocante. Ma costumava dizer que, se não fosse possível ouvir a
comida fritando do cômodo ao lado, não era realmente fritura, e a vida inteira
Kya acordara com o som daqueles bolinhos de milho estalando na gordura. Com

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