Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

barco, ele pensasse que ela só havia cozinhado e limpado em troca desse favor,
que fora assim mesmo que tudo começara, só que agora parecia um pouco
diferente. Ela estava gostando de se sentar e comer como uma família. Sua
necessidade de conversar com alguém era urgente.
Portanto ela não comentou sobre usar o barco sozinha. Em vez disso,
perguntou:
— Posso ir pescar com o senhor alguma hora?
Ele deu uma gargalhada, mas foi uma risada bondosa. Era a primeira vez que
ele ria desde que Ma e os outros tinham ido embora.
— Quer dizer então que você quer pescar.
— Quero, sim, senhor.
— Você é menina — disse ele, olhando para o prato e chupando um osso.
— Sou, sim, senhor, sou a sua menina.
— Bom, quem sabe eu levo você alguma hora.
Na manhã seguinte, ao sair correndo pela estradinha de areia com os braços
esticados à frente, Kya fazia ruídos molhados com os lábios, esguichando saliva.
Iria zarpar e sair navegando pelo brejo à procura de ninhos, depois alçar voo e
planar lado a lado com as águias. Seus dedos se transformaram em longas plumas
abertas diante do céu, sustentadas pelo vento abaixo delas. Então, de repente, ela
foi trazida com violência de volta à Terra por Pa gritando lá do barco. Suas asas
desabaram, seu estômago despencou; ele devia ter percebido que ela o havia
usado. Já sentia o remo no traseiro e atrás das pernas. Sabia se esconder, esperar
até que estivesse bêbado para que nunca a encontrasse. Mas ela já tinha avançado
demais pela estradinha, estava totalmente exposta, e lá estava ele, em pé com todas
as varas e bastões, acenando para ela se aproximar. Kya foi até lá, calada e
temerosa. Os apetrechos de pesca estavam todos espalhados pelo chão do barco, e
havia uma garrafa de aguardente de milho enfiada debaixo do banco.
— Sobe — foi tudo que ele disse à guisa de convite.
Ela começou a expressar alegria ou gratidão, mas a expressão vazia dele a
manteve quieta enquanto subia na proa e se sentava virada para a frente no banco
de metal. Ele ligou o motor e os dois seguiram pelo canal, esquivando-se da
vegetação conforme subiam e desciam os cursos d’água. Kya foi decorando as
árvores quebradas e os tocos velhos de placas. Ele desligou o motor num canal
secundário e acenou para ela se sentar no banco do meio.
— Vamos lá, raspa umas minhocas da lata — falou, com um cigarro de enrolar
pendurado no canto da boca.
Ensinou-lhe a prender a isca, a lançar e puxar o anzol. Parecia contorcer o
corpo em posições esquisitas para evitar roçar nela. Eles só falaram sobre pescaria;
nunca se aventuravam por outros assuntos nem sorriram com frequência, mas se
mantiveram firmes nesse terreno comum. Ele tomou um pouco de aguardente,
mas depois ficou ocupado e não bebeu mais. No fim do dia, o sol suspirou e
desbotou até ficar da mesma cor da manteiga, e eles talvez não tenham percebido,
mas seus ombros finalmente se curvaram e seus pescoços relaxaram.
No fundo, Kya torcia para não pegar nenhum peixe, mas sentiu um puxão,
recolheu a linha e tirou da água um bluegill graúdo que reluziu um brilho

Free download pdf