Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

Teria de encontrar outro jeito de arranjar comida, claro, mas empurrou o
pensamento para um canto distante da mente. Depois de jantar mariscos cozidos,
que ela havia aprendido a amassar até formar uma pasta e espalhar pelos biscoitos
salgados, folheou os livros amados de Ma, brincando de ler os contos de fadas.
Mesmo aos dez anos, ainda não sabia ler.
Então o lampião de querosene tremeluziu, diminuiu e se apagou. Em um
minuto o mundo era um círculo de luz suave; no seguinte, escuridão. Ela fez ah.
Como Pa sempre havia comprado querosene e enchido o lampião, ela nunca
tinha pensado muito nisso. Até ficar escuro.
Passou alguns segundos sentada, tentando extrair luz das sobras, mas não havia
quase nada. Então a forma arredondada da geladeira e a moldura da janela
começaram a se delinear na penumbra, e ela passou os dedos pela bancada até
encontrar um toco de vela. Acendê-la gastaria um fósforo, restando apenas cinco.
Mas a escuridão era um problema mais imediato.
Tchuf. Ela riscou o fósforo, acendeu a vela e o breu recuou para os cantos. Mas
já tinha visto o suficiente dele para saber que precisava de luz, e querosene custava
dinheiro. Ela abriu a boca, respirando em arquejos curtos.
— Talvez eu devesse ir até a cidade e me entregar às autoridades. Pelo menos
me dariam comida e me mandariam para a escola. — Mas, após pensar um
minuto, falou: — Não, não posso deixar as gaivotas, a garça, o barracão. O brejo
é a única família que eu tenho.
Sentada à luz do que restava da vela, teve uma ideia.
Levantou-se na manhã seguinte, mais cedo do que de costume, quando a maré
estava baixa, vestiu o macacão e saiu levando um balde, um canivete e dois sacos
grandes de aniagem. De cócoras na lama, colheu mariscos nos canais como Ma
tinha lhe ensinado, e em quatro horas agachada e ajoelhada juntou dois sacos
cheios.
O sol vagaroso se afastou do mar enquanto ela guiava o barco por uma névoa
densa até o posto de gasolina e iscas de Pulinho. Ele se levantou ao vê-la se
aproximar.
— Olá, Srta. Kya, vai querer gasolina?
Ela encolheu o pescoço. Não falava com ninguém desde sua última visita ao
Piggly Wiggly e sua fala estava falhando um pouco.
— Talvez gasolina. Mas depende. Ouvi dizer que o senhor compra mariscos, e
tenho alguns aqui. Pode me pagar em dinheiro e colocar um pouco de gasolina?
Ela apontou para os sacos.
— É, pode ser. Estão frescos?
— Catei antes de amanhecer. Agorinha mesmo.
— Muito bem. Dá para dar cinquenta centavos por um saco e um tanque
cheio pelo outro.
Kya deu um sorriso discreto. Dinheiro de verdade que ela mesma havia
ganhado.
— Obrigada — foi tudo que disse.
Enquanto Pulinho enchia o tanque, Kya entrou na lojinha dele ali mesmo no
cais. Nunca tinha prestado muita atenção porque fazia compras no Piggly, mas

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