Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

12.


Moedas e mingau


1956


Por semanas depois de Pa ir embora, Kya erguia os olhos ao ouvir corvos
grasnarem: talvez eles o tivessem visto mancando pela mata. Qualquer barulho
estranho no vento a fazia inclinar a cabeça, à escuta, para o caso de ser alguém.
Qualquer um. Até mesmo sair correndo da agente educacional seria divertido.
Mais do que tudo, procurava o garoto pescador. Algumas vezes, ao longo dos
anos vira-o ao longe, mas não falava com ele desde o dia em que ele havia lhe
mostrado o caminho de volta para casa pelo charco, três anos antes. Ele era a
única alma que ela conhecia no mundo além de Pulinho e algumas vendedoras.
Sempre que percorria os canais, olhava em volta tentando encontrá-lo.
Certa manhã, ao entrar com o motor ligado num estuário de grama, viu o
barco dele escondido nos juncos. Tate usava um boné diferente e estava mais alto,
e mesmo a mais de cinquenta metros Kya reconheceu os cachos louros. Desligou
o motor, manobrou silenciosamente o barco até o mato alto e ficou espiando.
Mordendo os lábios, pensou em ir até lá, quem sabe perguntar se ele tinha pegado
algum peixe. Parecia ser isso que Pa e qualquer outra pessoa no brejo dizia ao
encontrar alguém: “Está pegando alguma coisa? Alguma fisgada?”
Mas ficou só olhando, sem se mexer. Sentia uma forte atração por ele e uma
forte atração para se manter longe dele, e a consequência disso era ficar firme no
lugar. Por fim, começou a seguir o caminho de casa, com o coração martelando
as costelas.
Toda vez que o via era a mesma coisa: ficava olhando enquanto bancava a
garça.
Ela ainda colecionava penas e conchas, mas as deixava espalhadas pelos degraus
de tijolo e tábuas, salgadas e cheias de areia. Sempre passava uma parte do dia
enrolando, enquanto a louça se acumulava na pia, e por que lavar macacões que
ficariam sujos de lama outra vez? Havia muito tempo começara a usar os
macacões velhos descartados por irmãos e irmãs que não estavam mais ali. Suas
camisas estavam todas furadas. Ela não tinha mais nenhum sapato.
Certa noite, Kya tirou do cabide de arame o vestido sem mangas florido rosa e
verde, o que Ma costumava usar para ir à igreja. Já fazia muitos anos que passava

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