Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

não sabia quase nada sobre juntá-las em palavras de verdade.
Em questão de minutos, ele disse:
— Viu? Você já pode escrever uma palavra.
— Quê?
— B-e-c-a. Pode escrever a palavra beca.
— Que que é beca? — perguntou ela.
Ele sabia que não devia rir.
— Não se preocupe se não souber. Vamos em frente. Logo logo você vai
escrever uma palavra que conhece. — Depois de um tempo, ele disse: — Você
vai ter que estudar bastante o alfabeto. Vai demorar um pouco para pegar, mas
você já sabe ler um pouquinho. Vou mostrar.
Como ele não tinha nenhuma gramática, o primeiro livro dela foi a cópia do
pai de Tate de Pensar como uma montanha, de Aldo Leopold. Ele apontou para a
primeira frase e pediu que lesse em voz alta. A primeira palavra era Existem, e ela
teve de voltar ao alfabeto e treinar o som de cada letra, mas ele foi paciente,
explicou o som da letra x, e ergueu os braços e riu quando ela finalmente
pronunciou a palavra. Radiante, continuou a observá-la.
Aos poucos, ela foi desvendando a frase palavra por palavra. “Existem pessoas
que conseguem viver sem coisas selvagens, e pessoas que não.”
— Ah — disse ela. — Ah.
— Você sabe ler, Kya. Não vai mais ter um dia em que você não saiba ler.
— Não é só isso. — Ela quase sussurrou. — Eu não sabia que palavras podiam
ter tanta coisa. Não sabia que uma frase podia ser tão cheia.
Ele sorriu.
— Essa é uma frase muito boa. Nem todas as palavras têm tanta coisa assim.


*


Ao longo dos dias seguintes, sentados na curva do carvalho na sombra ou na
margem da lagoa debaixo do sol, Tate lhe ensinou a ler as palavras que falavam
sobre os gansos e grous de verdade ao seu redor. “E se não houver mais a música
dos gansos?”
Entre ajudar o pai ou jogar beisebol com os amigos, ele ia à casa de Kya várias
vezes por semana, e agora, não importava o que estivesse fazendo — tirando ervas
daninhas da horta, dando comida às galinhas, catando conchas —, ela ficava atenta
ao barulho do barco dele roncando canal acima.
Na praia, certo dia, lendo sobre o que os chapins almoçavam, ela lhe
perguntou:
— Você mora com a sua família em Barkley Cove?
— Moro com meu pai. Sim, em Barkley.
Kya não perguntou se ele tinha outros parentes que não estavam mais lá. A
mãe dele também devia ter abandonado a família. Parte dela quis tocar a mão
dele, uma vontade estranha, mas seus dedos se recusaram. Em vez disso, ela
decorou as veias azuladas na parte interna do pulso dele, tão intrincadas quanto

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