Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

aquelas desenhadas nas asas das vespas.


*


À noite, sentada à mesa da cozinha, ela repassava as lições à luz do lampião de
querosene, cuja iluminação suave vazava pelas janelas do barracão e tocava os
galhos baixos dos carvalhos. Era a única luz em muitos e muitos quilômetros de
breu, exceto pelo brilho discreto dos vaga-lumes.
Com cuidado, ela escrevia e pronunciava diversas vezes cada palavra. Segundo
Tate, palavras compridas eram apenas palavras pequenas amarradas umas nas
outras; assim ela não teve medo delas, aprendeu pleistoceno ao mesmo tempo que
aprendeu sol. Aprender a ler era a coisa mais divertida que já tinha feito na vida.
Mas não entendia por que Tate havia se oferecido para ensinar um lixo branco e
pobre feito ela, nem por que tinha ido até lá para início de conversa, levando
penas bonitas. Mas ela não perguntou, com medo de que a pergunta o fizesse
refletir e ir embora.
Agora Kya podia enfim catalogar todos os seus espécimes preciosos. Pegou
cada pena, cada inseto, cada concha e cada flor, verificou nos livros de Ma como
se soletrava o nome, e escreveu-o com cuidado no desenho do papel pardo das
sacolas.


*


— O que vem depois de vinte e nove? — perguntou ela a Tate certo dia.
Ele a encarou. Ela sabia mais sobre as marés e os gansos-da-neve, sobre as
águias e as estrelas do que a maioria das pessoas jamais saberia, mas não sabia
contar até trinta. Ele não queria deixá-la com vergonha, por isso não demonstrou
surpresa. Kya era muito talentosa interpretando olhares.
— Trinta — respondeu apenas. — Olha, eu vou te mostrar os números e a
gente vai fazer algumas contas básicas. É fácil. Vou trazer uns livros para você.
Ela lia tudo que aparecia: as instruções no pacote de mingau, as anotações de
Tate, e as histórias dos livros de contos de fadas que passara anos fingindo ler.
Então, certa noite, emitiu um débil ah e pegou a velha Bíblia na prateleira.
Sentada à mesa, virou as páginas finas com cuidado até chegar a “Esta Bíblia
pertence a...”. Encontrou o próprio nome bem no final. Ali estava ele, o dia do
seu aniversário: Srta. Catherine Danielle Clark, 10 de outubro de 1945. Então tornou
a subir pela lista e leu os nomes verdadeiros de seus irmãos e irmãs:
Sr. Jeremy Andrew Clark, 2 de janeiro de 1939.
— Jeremy — falou em voz alta. — Jodie, nunca pensei que você fosse um Sr.
Jeremy.
Srta. Amanda Margaret Clark, 17 de maio de 1937. Kya tocou o nome com os
dedos. Repetiu o gesto várias vezes.
Continuou lendo. Sr. Napier Murphy Clark, 4 de abril de 1936. Kya falou

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