Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

— Kya, você já pensou em voltar à escola e ponto? Não iria te matar, e talvez
eles te deixassem em paz.
— Eles devem ter entendido que estou sozinha, e se eu for vão me pegar e me
deixar com uma família. De qualquer forma, já estou velha demais para a escola
agora. Em que série que eles iriam me colocar, na primeira?
Seus olhos se arregalaram quando ela pensou em se sentar numa cadeira
minúscula cercada por criancinhas que conseguiam pronunciar palavras e contar
até cinquenta.
— Então você pretende morar sozinha no brejo para sempre?
— Melhor do que ir para uma família adotiva. Pa dizia que ia mandar a gente
para uma se a gente fizesse má-criação. Dizia que elas são más.
— Não são, não. Nem sempre. A maioria é gente de bem que gosta de
crianças — falou Tate.
— Quer dizer que você preferiria uma família adotiva do que morar no brejo?
— perguntou ela, com o queixo espichado e a mão no quadril.
Ele passou um minuto calado.
— É bom você trazer cobertores e fósforos para o caso de ficar frio. Quem
sabe algumas latas de sardinha. Elas duram uma eternidade. Mas não deixe comida
fresca aqui; vai atrair ursos.
— Tenho medo de urso não.
— Não tenho medo de urso.


*


Durante o resto do verão, Kya e Tate tiveram aulas de leitura no chalé em ruínas.
Em meados de agosto, eles já tinham lido Pensar como uma montanha inteiro, e
embora ela não conseguisse ler todas as palavras entendeu a maior parte. Aldo
Leopold lhe ensinou que as planícies aluviais são extensões vivas dos rios, que
podem tomá-las de volta na hora em que bem entenderem. Qualquer pessoa que
more numa planície aluvial só está aguardando nas coxias do rio. Ela aprendeu
para onde os gansos vão no inverno e o que significa o canto deles. As palavras
suaves do autor, quase poemas aos seus ouvidos, lhe ensinaram que o solo está
repleto de vida e é uma das riquezas mais preciosas da Terra; que secar os alagados
seca a terra num raio de muitos quilômetros, matando junto com a água plantas e
animais. Algumas das sementes ficam adormecidas na terra ressecada por décadas,
à espera, e quando a água finalmente volta para o seu devido lugar elas explodem
da superfície do solo e revelam seus rostos. Maravilhas e conhecimentos da vida
real que ela jamais teria aprendido na escola. Verdades que todo mundo deveria
saber, mas que, embora estivessem evidentes por toda parte, pareciam se manter
em um segredo semelhante ao das sementes.
Eles se encontravam no chalé várias vezes por semana, mas na maioria das
noites ela dormia em seu barracão ou então na praia com as gaivotas. Como
precisava juntar lenha antes do inverno, transformou isso em missão, e trazia levas
de perto e de longe, que foi empilhando de modo mais ou menos ordenado entre

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