® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

Enquanto o ipê viajava pelo Amazonas, a Aimex (Associação da Indústrias Exportadoras de Madeira do Estado do Pará), da qual a Coexpa faz parte,
pressionava o Ibama para recuar na decisão de inserir o ipê amarelo na lista de espécies sob risco de extinção, organizada pela Cites (Convenção sobre
o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da Flora e da Fauna Silvestres, ligada à ONU). A proposta surgira no fim de 2018, ainda na gestão de
Michel Temer, e, caso fosse implantada, tornaria mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, com a exigência de certificado de origem da madeira
pelo exportador (o que inviabilizaria a remessa, para o exterior, do lote dessa espécie vendido pela Canaã do Norte à Coexpa). “Não se justifica
estabelecer procedimentos que estão indo na contramão das medidas adotadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, de desregulamentar
procedimentos de controle desnecessários”, escreveu a presidência da Aimex em ofício ao Ibama.


A pressão sobre o governo brasileiro também vinha dos importadores, sobretudo os norte-americanos (segundo o Ibama, 90% do ipê extraído no Brasil
é exportado). Naquele mês de março de 2019, Salles viajou para os Estados Unidos na comitiva do presidente Bolsonaro. Não consta na agenda oficial
dele reuniões com representantes das importadoras de madeira norte-americanas, mas, coincidência ou não, exatamente naqueles dias o governo
recuou da intenção de inserir o ipê na lista da Cites. Em comunicado à Câmara dos Deputados, o ministro Ricardo Salles disse haver “falta de estudos
científicos específicos” e “necessidade de consultas mais detalhadas” ao Ibama. Desde então, a proposta segue engavetada.


Naquele fim de março, logo após o ministro voltar ao Brasil, lobistas da IWPA (International Wood Products Association), entidade que reúne as
maiores importadora de madeira dos Estados Unidos, inclusive a J. Gibson MacIlvain, comentaram o recuo do governo brasileiro em relação ao ipê.
“Isso confirma o que ouvimos do pessoal da embaixada do Brasil na sexta-feira”, escreveu Joseph O’Donnell, diretor da IWPA, para uma lobista da
entidade, em e-mail de 26 de março daquele ano obtido pela piauí. Finalmente, o caminho estava livre para a exportação do ipê. Ao chegar ao porto de
Barcarena, o lote de deckings foi dividido em três contêineres embarcados no navio cargueiro Balsa em 10 de abril de 2019. No dia seguinte, a
embarcação zarpou do Pará com destino ao porto de Cristóbal, Panamá. Oito dias depois, o carregamento foi inserido em outro navio, que rumou para
Baltimore, um dos principais dos Estados Unidos, no estado de Maryland, onde chegou em 14 de maio. Do porto de Baltimore, a madeira viajou mais
27 km até a sede da J. Gibson McIlvain, localizada no município de Perry Hall. A J. Gibson McIlvain não vende diretamente para o consumidor final,
apenas para pátios em todos os Estados Unidos – entre eles, a loja no Bronx, em Nova York.


A J.Gibson McIlvain não possui nenhuma ação por crime ambiental nos Estados Unidos e, durante as investigações tanto da piauí quanto do Ibama,
não apareceu nenhuma suspeita de que a empresa tivesse conhecimento prévio da origem ilegal do ipê amarelo que recebeu. Procurada, a empresa não
se manifestou. Em seu site, a McIlvain se diz orgulhosa do processo rigoroso que utiliza para garantir qualidade e legalidades da madeira da
Amazônia. “O processo começa com a concessão de terras no Brasil. O governo local tem um excelente programa florestal e é fácil rastrear o histórico
de negócios e as fontes de cada fábrica”, diz.


No Brasil, comercializar madeira de origem ilegal é crime com pena de até quatro anos de reclusão, sem multa. Nos Estados Unidos, a punição, prevista
no Lacey Act, é mais dura: vai até cinco anos de prisão, com multa de 500 mil dólares, o que equivale a quase 3 milhões de reais ao câmbio atual. O
combate ao contrabando de madeira nos EUA melhorou com o fim da gestão de Donald Trump, na avaliação de Daniel Brindis, do Greenpeace. Mas
poderia ser mais efetivo. Uma das falhas da fiscalização, diz ele, é o excessivo apego à formalidade documental. “O governo se apega muito ao que está
no papel, mas já está provado que, em alguns casos, os documentos podem ser fraudados na origem”, diz ele. “Infelizmente, o governo norte-
americano ainda é suscetível ao lobby do setor madeireiro.” Para Rhavena Madeira, do CCCA, falta efetividade na aplicação da Lacey Act. “Esses
regulamentos têm deficiências de implementação e limitações de investigação ligados à dificuldade da rastreabilidade”, afirma. “O mesmo ocorre na
Europa. As autoridades competentes dificilmente conseguem identificar todos os operadores atuantes na cadeia e em muitos países não há operações
de controle e fiscalização sistemáticas. Faltam procedimentos e interpretações uniformes.”


Em agosto de 2020, cinco meses após engavetar a proposta de tornar mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, o então ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, foi além: nomeou André Heleno Silveira, um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) sem qualquer experiência na
área ambiental, para cuidar da Coordenação de Inteligência de Fiscalização do Ibama, um setor vital no combate ao crime organizado por trás da
destruição da Amazônia. Semanas depois, Salles designou o policial militar aposentado Walter Mendes Magalhães Júnior como superintendente do
órgão no Pará. Silveira e Magalhães Júnior cuidaram de desmontar os núcleos de inteligência, tanto na matriz em Brasília quanto na filial em Belém,
respectivamente (o Ibama possui pequenos núcleos de inteligência distribuídos pelos 26 estados), trocando servidores experientes por pessoas sem
qualificação. “Claramente o objetivo era inviabilizar qualquer investigação mais aprofundada contra os grileiros, madeireiros e garimpeiros”, diz um
funcionário de alto escalão do órgão federal, sob anonimato, para evitar retaliações.


Meses mais tarde, em maio de 2021, tanto Salles quanto Magalhães Júnior foram alvos da Operação Akuanduba, da Polícia Federal, que investiga a
participação de ambos em um esquema de facilitação do contrabando de madeira amazônica de origem ilegal – também são apurados os crimes de
prevaricação, advocacia administrativa e corrupção. Segundo a PF, após Salles encontrar-se em Brasília com representantes da Aimex, do Pará, em
fevereiro de 2020, Magalhães Júnior, supostamente por ordem do então ministro, assinou licenças de exportação retroativas para legalizar 153 mil
metros cúbicos de ipê e jatobá extraídos ilicitamente no Pará e apreendidos no mês anterior nos Estados Unidos. Pouco depois de a investigação da PF
vir à tona, Salles deixou o cargo de ministro.


Examinada em retrospectiva, a extinção do setor de inteligência em 2019 favoreceu as quadrilhas que atuam no contrabando de madeira ilegal para
exterior. Não há notícia de que o sucateamento do setor de inteligência tenha tido o objetivo específico de impedir a descoberta da conexão do ipê
amarelo exportado para Nova York, mas o fato é que a decisão do ministro favoreceu os contrabandistas.


Ainda no primeiro semestre de 2019, os fiscais do Ibama suspeitaram do tal leilão de madeira que teria sido promovido pela prefeitura de Itaituba. No
início de 2019, a prefeitura teria pedido à Secretaria de Meio Ambiente do Pará que registrasse os créditos de uma imensa quantidade de madeira em
favor da serraria JMS: ao todo, eram 8,6 mil metros cúbicos, dos quais 2,3 mil de ipê, suspostamente arrematados no leilão. A inserção dos créditos no
Sisflora, o sistema do governo paraense que controla o transporte de madeira, é uma forma de legalizar o produto. A secretaria aceitou o suposto
pedido da prefeitura sem contestar.

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