® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

“Receitas” desenhada no canto inferior direito. Dentro, estão registradas 156 receitas,
todas elas escritas a mão, separadas em onze categorias, de molhos a sobremesas, sem
esquecer os drinques. Os pratos doces (bolos, biscoitos, pudins, cremes e sorvetes)
representam mais de 40% do total, e quase igual proporção das receitas está
relacionada ao nome de alguém, como a “Torta salgada (Lelete)” e os “Pãezinhos da
Elzira”, ou então a alguma marca da indústria alimentícia, como as “Rosquinhas Royal
União”. Há ainda todo um capítulo com receitas copiadas do decorador e chef amador
carioca Miguel de Carvalho Neto, conhecido como Miguel, o Magnífico, que teve certa
proeminência no meio culinário entre os anos 1950 e 1960.


Quando minha avó me deu o caderno de presente, eu imaginava encontrar ali todo um
arsenal de receitas antigas da família, algumas talvez de mais de um século. Entretanto,
à medida que ia passando as páginas, percebi que se tratava de um material bem mais
recente, possivelmente compilado a partir de 1957, quando Mary precisou gerenciar
pessoalmente a cozinha.


As receitas citam os cubos de caldo Knorr, cuja fábrica abriu em São Paulo em 1961, e a
maionese Hellmann’s, que chegou ao Brasil em 1962. Algumas também recorrem ao
ketchup, do qual os cozinheiros brasileiros passaram a falar mais comumente a partir
da década de 1960. Há ainda uma receita chamada “Maionese Walita”, difundida na
década de 1950 pela fábrica de eletrodomésticos para ensinar as donas de casa a
usarem o liquidificador. As receitas não foram datadas, mas acredito que tenham sido
recolhidas até o fim da década de 1970.


Sendo uma coletânea mais recente, o caderno estava longe de fazer parte daquilo que
Gilberto Freyre chamou de “maçonaria das mulheres” – a herança culinária de uma
família, com receitas seculares transmitidas de mãe para filha, como um bem precioso
do clã. Se não corresponde à ideia de Freyre, o caderno da minha bisavó, contudo,
encaixa-se perfeitamente naquilo que Colleen Cotter chamou de livros de receitas
comunitários (community cookbooks). A linguista norte-americana definiu assim estes
trabalhos manuscritos, despretensiosos, feitos por donas de casa a partir de referências
de seu núcleo familiar, seu bairro ou seu clube, e que de certa forma tiravam as
mulheres do isolamento de suas cozinhas, inserindo-as em uma comunidade. Por isso,
são mais que meros registros de receitas: constituem uma narrativa cultural, tecida por
meio de alianças e conhecimentos.


No caderno de Mary esta aliança está traçada quando ela relaciona pessoas (Lelete,
Elzira, Dora...) às receitas, que também indicam o crescente impacto da indústria
alimentícia (como a Nestlé e a União) sobre o paladar doméstico. Cada receita,
portanto, tem algo a ver com a história pessoal de Mary, mas também com a história
social da alimentação no país. A “Musse de atum (Alba)”, por exemplo, oriunda da

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