® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

Décadas depois, em 1961, no salão paroquial de uma igreja no Alto da Boa Vista, no
Rio de Janeiro, ocorreu um fato histórico de grande importância: trinta mulheres de
todo o país se reuniram no Primeiro Encontro Nacional de Empregadas Domésticas,
promovido pela Juventude Operária Católica. O feito rendeu uma reportagem de três
páginas e diversas fotos na revista Manchete, com o título Revolução da Copa e Cozinha.
Abre a reportagem a fala de uma doméstica anônima, identificada apenas por
“escurinha”, que diz:


É preciso abolir o elevador de serviço. Que diabo! Aos domingos, quando saímos para passear,
mais arrumadinhas, não custava nada a gente usar o elevador social. As patroas deviam
reconhecer que nós somos criaturas humanas, vivendo num país democrático. Ou os direitos
civis variam com as classes econômicas? Será que ainda vivemos no regime da escravidão?


De certa forma, vivíamos. Levou ainda quase meio século para que os direitos das
empregadas domésticas fossem finalmente reconhecidos.


Quando minha bisavó iniciou a escrita de seu caderno de receitas, esses direitos


ainda não existiam. Mary não entendia das panelas, mas comandava a cozinha,
fazendo do caderno o instrumento que lhe garantia o sucesso à mesa.


As verdadeiras mãos por trás das comidas eram as cozinheiras, que colocavam as
receitas do caderno em prática. No caderno, elas estão identificadas como autoras de
apenas 8 das 156 receitas: “Pãezinhos (Elzira)”, “Rolinhos de queijo (Elzira)”,
“Empadas (Elzira)”, “Pastéis (Geny)”, “Pastel (Venina)”, “Biscoitos (Venina)”, “Sorvete
de creme (Venina)” e “Biscoitos (Siá Josefa)”.


Elzira e Venina eram cozinheiras de minha bisavó. Geny, de sua cunhada Alba. E Siá
Josefa, de uma prima de seu marido, Nice. Minha avó conta que Elzira chegava tarde
no serviço, fumava muito, era desbocada, mas cozinhava muito bem. Era a responsável
por fazer inclusive os quitutes dos chás de quinta-feira, data especial na agenda social
de minha bisavó. Venina auxiliava Elzira, e quando aprendeu os segredos da cozinha
tomou o lugar da colega, que foi dispensada. Infelizmente, não encontrei registros dos
sobrenomes nem das idades das duas.


Mary anotou as receitas das cozinheiras sem instruções detalhadas, nem as medidas e
temperaturas exatas. Algumas indicações bastavam para quem sabia cozinhar por tino
e por prática. Minha bisavó provavelmente não conseguia reproduzi-las sozinha, mas

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