® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

respondido com um ato voluntário como é voltar. Estritamente não se pode voltar
porque é um tempo que já não existe.”


No dia 10 de novembro de 2021, quase cinquenta anos após a fuga de


Montevidéu, Cristina Peri Rossi estava de cama em seu apartamento no bairro Les
Corts, em Barcelona, quando recebeu um telefonema de Miquel Iceta, ministro da
Cultura e Esportes da Espanha. Faltavam dois dias para Peri Rossi completar 80 anos, e
o médico que tinha ido a sua casa checar um broncoespasmo acabara de sair. Iceta lhe
deu a notícia de que fora escolhida como ganhadora do Prêmio Miguel de Cervantes, o
mais importante da literatura de língua espanhola, pela totalidade de sua obra – 46
livros, entre poesia, romances, contos e ensaios. A premiação consiste em 125 mil euros,
aproximadamente 800 mil reais, galardoados pelo rei da Espanha. Peri Rossi é a sexta
mulher a ganhar o prêmio, que conta 46 edições. A uruguaia é considerada por muitos
críticos a única mulher do chamado boom latino-americano, ao lado de autores como
Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar – apesar de já ter
salientado numa entrevista de 1988 seu pertencimento a uma geração posterior,
“marcada pela experiência do exílio”. Peri Rossi é 27 anos mais nova do que Cortázar,
por exemplo – o que não os impediu de manter uma longa e intensa amizade até a
morte do escritor argentino, com quem compartilhou o amor por dinossauros,
caleidoscópios e justiça social, registrada no livro Julio Cortázar y Cris, de 2014.


Pouquíssimo lida no Brasil, com uma só obra traduzida no país (Habitaciones Privadas,
de 2012, publicada como Espaços Íntimos pela editora Gradiva em 2017), Peri Rossi é
também pouco conhecida quando comparada com os nomes mais famosos do boom.
Desde seu primeiro livro, Viviendo (1963), lançado quando contava apenas 22 anos,
causou polêmica; se não no meio da crítica literária, que possivelmente só lhe dedicou
uma resenha relevante na época (porém muito elogiosa e assinada pelo autor Mario
Benedetti), ao menos em seu núcleo familiar. No ensaio Detente, Instante, Eres Tan Bello,
de 2016, ela conta que sua mãe se recusou a ler a obra, “temerosa, segundo suas
palavras, de saber o que eu pensava e sentia”. Já seu tio materno, em cuja biblioteca
Peri Rossi passou a infância e a adolescência, não só não leu o livro como a partir daí
deixou de ler de vez. Nas palavras da sobrinha, abandonou os livros “sob o pretexto de
que a literatura contemporânea (ou seja, eu) não valia nada”.


A rebeldia da escrita de Peri Rossi estava presente desde os 6 anos, quando anunciou à
família que iria ser escritora, em um grande almoço de domingo na casa da avó.

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