® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

“Imediatamente, fez-se um silêncio geral”, ela escreve. “Só se ouvia o tilintar de algum
garfo no prato. Por fim, meu tio materno, solteiro, intelectual, funcionário público,
grande leitor, amante da música, porém misógino, neurótico e frustrado, exclamou: ‘O
que a menina falou?’” A reação do tio desencadeou uma aflição geral dos parentes. “‘O
que ela está falando?’, perguntava, incrédulo, um tio-avô. ‘Está louca’, sentenciava
minha avó, que sempre me fez sentir como um bicho estranho. ‘Escritora? De onde
tirou isso?’, proclamava outro.” A mãe, professora de literatura, foi a única que
acreditou, “mas suspirou profundamente”.


Na biblioteca do tio, modesta mas bastante completa para uma família fora da elite
intelectual montevideana – ele era um funcionário público de baixo escalão; o pai de
Peri Rossi, alcoólatra e violento, trabalhava como operário numa fábrica têxtil –, ela
descobriu a quase total ausência de autoras mulheres nas estantes. Havia três: a grega
antiga Safo de Lesbos, Virginia Woolf, inglesa, e a argentina Alfonsina Storni. O tio
perguntou-lhe um dia se ela sabia como as autoras tinham morrido; a menina
respondeu que sim, que as três tinham se suicidado. “Viu? As mulheres não escrevem,
e quando escrevem, se suicidam”, disse. Peri Rossi se viu num impasse, mas logo
decidiu: “Ia ser escritora, e a coisa do suicídio ficaria para depois.” Quando se assumiu
lésbica, ainda adolescente, viu que suas referências eram ainda mais estritas. “Bem, eu
disse: somos três: minha namorada, Safo e eu. Como não tenho nenhum problema com
as minorias, não me pareceu de todo ruim esse triângulo”, disse em entrevista ao jornal
argentino Página 1 2 , em 2009. Depois da adolescência, já aos 25 anos, uma visita
desavisada, ao entrar na casa da escritora, se depararia com a frase “Eu não tenho
preconceito contra os heterossexuais, nem os discrimino”.


Foi para conseguir livros de Peri Rossi que eu saí de Buenos Aires, onde estava


fazendo pesquisa, para passar alguns dias do outro lado do Rio da Prata. Era maio de
2019, e depois de três anos me debruçando sobre sua obra, ainda não tinha conseguido
acesso a quase nenhum dos livros anteriores à viagem do exílio, que foram proibidos e
recolhidos pelos militares. Por isso mesmo não sabia se viria a encontrá-los, mesmo em
Montevidéu. Tentativas preliminares de procurar as publicações em sites de venda
online não geraram nenhum resultado. O plano era um tanto ingênuo: caminhar pela
cidade, sozinha, entrando em todo sebo que eu cruzasse e perguntando sobre os livros.
Para a minha surpresa – e a dos livreiros uruguaios, que achavam bastante curioso o
meu interesse por Peri Rossi – encontrei primeiras edições de Los Museos
Abandonados e El Libro de Mis Primos, respectivamente seu segundo e terceiro livros,

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