® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

zombaria tanto da direita como de boa parte da velha Concertación. É preciso dar
crédito a Bachelet, que em seu segundo mandato pretendia iniciar um processo
constituinte, embora não tivesse a vontade política necessária para fazer com que fosse
aprovado – e acabou vendo o projeto ruir junto com as reformas da previdência e da
educação. O resultado dos protestos fez a ideia ressurgir como algo possível e urgente.


A ditadura militar de Pinochet em certo momento encarou a reforma constitucional
com urgência semelhante. O governo ditatorial começou a trabalhar numa nova
Constituição pouco depois de assumir o poder, em 1973, convicto de que o sistema
democrático enraizado na Constituição de 1925 estava irremediavelmente obsoleto. A
junta militar desejava eliminar a possibilidade de que um novo projeto revolucionário e
anticapitalista, à semelhança do liderado por Salvador Allende, transformasse
radicalmente as instituições econômicas e políticas, e até mesmo os corações e as
mentes dos chilenos. No fim da década de 1970, uma pequena comissão criada pela
ditadura apresentou os esboços iniciais da nova Constituição. Depois de modificar o
documento para concentrar e expandir o poder do regime, Pinochet o ratificou por
meio de um plebiscito sem eleitores registrados – as listas eleitorais haviam sido
destruídas pela ditadura – e sem que houvesse uma oposição consentida.


Durante a contestação à ordem ditatorial, iniciada com enormes protestos nacionais em
1983, a demanda por uma nova Assembleia Constituinte começou a vir à tona. No
entanto, a oposição moderada – a aliança entre o PDC e o PS – acabou aceitando o
processo de transição previsto na Constituição de 1980, que resultou no plebiscito de
1988 no qual 56% rejeitaram Pinochet. O pragmatismo da coalizão foi motivado pela
derrota da estratégia insurrecional da esquerda radical e pela repressão do governo aos
protestos. Líderes moderados pressionaram por uma reforma nos aspectos mais
antidemocráticos da Constituição – como o banimento de partidos marxistas –,
recorrendo a negociações com o regime em 1989.


Essas negociações permitiram que uma série de mecanismos antidemocráticos
sobrevivesse durante a transição da ditadura à democracia, entre eles a manutenção de
senadores biônicos (ex-integrantes da Corte Suprema,[2] das Forças Armadas e de outras
instituições estatais, todas marcadamente conservadoras), um sistema eleitoral que
permitia à direita controlar metade do Congresso tendo cerca de um terço dos votos, e
a impotência do presidente para remover o alto-comando das Forças Armadas.


Cientistas sociais da época chamaram esses aspectos da Constituição de “enclaves
autoritários”. Algumas mudanças foram conquistadas em 2005 – como o fim dos
senadores biônicos –, mais uma vez como resultado de negociações entre a velha
Concertación e a direita. Mas a exigência de uma nova Constituição foi deixada de lado
em nome da estabilidade política. Essa meta continuou sendo uma aspiração da

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