® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

muito trabalho a fazer para construir uma alternativa viável à democracia neoliberal
deslegitimada.


O processo constitucional é uma oportunidade histórica para a esquerda chilena por
dois motivos. Primeiro, representa a institucionalização do conflito iniciado pelo
levante de 2019. Apesar da natureza apartidária e até mesmo antipartidária dos
protestos, a esquerda conseguiu se conectar com o novo senso comum criado pelo povo
nas ruas e canalizá-lo como uma força para transformar a Assembleia Constituinte.
Entre outras coisas, a esquerda é a força política mais bem preparada para defender as
causas feministas, ambientalistas e indígenas que agora têm apoio majoritário, mas que
foram em grande medida ignoradas pelos partidos da transição. Boric começa seu
mandato presidencial em março. Junto com a esquerda, ele tem a oportunidade de
consolidar a nova ordem constitucional a partir de sua posição no governo. Sua
legitimidade será reforçada por uma Constituição que estabelece um novo papel para o
Estado em questões de direitos e regulação de grandes corporações.


É bem possível que a Constituinte remova os traços mais salientes da Constituição de
1980, como os enclaves autoritários remanescentes ou a noção bastante rígida de
propriedade privada, que permitiu a mercantilização do direito à água, dentre outras
políticas. Outros aspectos decisivos da Constituinte são o reconhecimento
constitucional dos povos indígenas, uma nova definição da sociedade e da família que
permita mudanças legislativas, como a legalização do aborto, e limites efetivos e
concretos para a exploração do meio ambiente por mineradoras transnacionais,
madeireiras e empresas de pesca. Espera-se ainda que a Constituinte acabe com a
dimensão mercantil da previdência social, da saúde e do sistema de educação. Todas
essas demandas se alinham com a agenda tradicional da esquerda. Conflitos históricos
hão de acontecer em breve dentro da forma constitucional de uma democracia social
pós-liberal.


Entretanto, há também riscos políticos. A duração da Assembleia Constituinte e as
divisões internas já ameaçam indispor uma grande fatia do público, o que pode afetar a
legitimidade do texto que emergir dos trabalhos. A direita e a imprensa conservadora
estão determinadas a desacreditar a Constituinte, usando quaisquer erros e atrasos
para isso – e o apoio que Kast recebeu na eleição presidencial prova que eles fizeram
avanços. Ao mesmo tempo, houve importantes desacordos dentro do campo
progressista, especialmente durante o debate das regras que irão guiar o processo. A
manutenção de um quórum de dois terços estabelecido na autorização original da
Constituinte provocou debates exasperados na esquerda. Em futuras disputas, a
esquerda terá de equilibrar a adesão a seus compromissos históricos e a necessidade de
não colocar em risco o sucesso das deliberações.

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