® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

Para além dos partidos, há também o risco de que certos aspectos da plataforma
progressista acabem inspirando mais divisão do que unidade. A cientista política
norte-americana Nancy Fraser escreveu sobre a diferença entre uma “política de
reconhecimento” e uma “política de redistribuição”. A primeira, que tem amplo apoio
na geração mais jovem, valoriza a diversidade e a diferença. Essas aspirações vêm da
esquerda, é claro, mas não deveriam ser seus únicos objetivos. Se não for acompanhada
de uma política de redistribuição – que visa melhorar as condições sociais e materiais e
diminuir o poder das grandes corporações –, a política de reconhecimento pode acabar
afastando alguns eleitores. Para isso, o bloco de esquerda na Constituinte deve
enfatizar mudanças à Constituição que estabeleçam direitos de sindicalização, direito à
greve e outros regramentos que teriam impacto direto nas vidas de milhões de
trabalhadores.


O processo no Chile está conectado a uma mudança política mais ampla na América
Latina, que se manifestou de maneira diferente em cada país no ano passado – do
levante colombiano[5] à eleição do professor e sindicalista Pedro Castillo no Peru e da
líder de esquerda Xiomara Castro em Honduras. Há sinais de uma reestruturação
global na esteira da pandemia de Covid, caracterizada pelo desejo de ter maior controle
sobre os fluxos de capital e pela consciência da necessidade de reduzir a extrema
concentração de riqueza e de levar as mudanças climáticas mais a sério.


Caso o mundo de fato entre numa fase pós-liberal – o que nem de longe pode ser dado
como certo –, o Chile talvez sirva como um guia e um laboratório, assim como foi na
segunda metade dos anos 1970, quando se tornou pioneiro nas reformas econômicas
radicais do neoliberalismo. Hoje a esquerda chilena tem a oportunidade de ajudar a
construir uma nova ordem que pode moldar as estruturas sociais, econômicas e
políticas do país para os próximos anos, e provocar também importantes reverberações
regionais e globais. Substituir a Constituição não é o mesmo que uma revolução, ou
uma mudança imediata nas relações de poder. Mas representa a superação definitiva
da longa ditadura militar e de seus legados neoliberais, e um imenso avanço na
oportunidade de desenvolver uma agenda progressista robusta. É um momento para
caminhar na direção do horizonte que uma boa parte da esquerda chilena sempre
buscou: o socialismo democrático.


Artigo originalmente publicado na revista Dissent.

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