® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

Quando a noite começa a cair no sul do Pará, dezenas de caminhões deixam o fundo da mata rumo ao asfalto da BR-163, a rodovia de quase 4,5 mil
quilômetros que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará. Velhos e barulhentos, os veículos movem-se devagar, abarrotados de pesadas toras
de ipê, jatobá e cumaru, todas madeiras de alto valor comercial e extraídas criminosamente, horas antes, da Floresta Nacional do Jamanxim, uma das
mais desmatadas do país. Os motoristas confiam no breu noturno para driblar a fiscalização. É um cuidado exagerado, herdado de outros tempos, pois
atualmente a presença de fiscais dos órgãos ambientes é praticamente nula na região.


Boa parte dos caminhões tem o mesmo destino: o distrito de Isol, no município de Novo Progresso, um lugarejo poeirento às margens da BR-163, com
uma dúzia de ruas sem asfalto e casas simples. No distrito, onde estão instaladas cinco grandes serrarias, respira-se madeira, literalmente. O cheiro das
toras cortadas impregna o ar, em meio ao ronco incessante das serras. Em fevereiro de 2019, no período de apenas doze dias, Isol recebeu um
carregamento de 970 metros cúbicos de ipê amarelo nas formas de toras, pranchas e deckings. A madeira encheu 25 caminhões.


Examinando as guias florestais, documentos oficiais que registram todo o percurso da madeira no estado do Pará, descobriu-se que aquela madeira
fora apreendida e doada pelo Ibama à prefeitura de Itaituba, cidade às margens do rio Tapajós, distante 400 quilômetros de Novo Progresso. A
prefeitura, por sua vez, vendeu o material em leilão, por 335 mil reais, para a JMS Alexandre Serraria. Dentro desse imenso lote de madeira, estavam os
53 metros cúbicos de ipê cujo percurso a piauí rastreou. Encerrado o leilão em Itaituba, a madeira, ainda segundo as guias florestais, foi transportada
por quase 500 quilômetros em direção ao sul, até chegar ao distrito de Isol, onde fica a sede da JMS Alexandre Serraria. Em seguida, a JMS vendeu o
lote de 53 metros cúbicos de ipê para a Canaã do Norte Madeiras, cuja sede também fica em Isol. A Canaã do Norte, por sua vez, revendeu para uma
terceira empresa, que levou a madeira até o porto de Barcarena, na região metropolitana de Belém, de onde o carregamento partiu com destino aos
Estados Unidos.


Essa é a história oficial.


A história real começa com uma fraude. A prefeitura de Itaituba jamais fez um leilão de 970 metros cúbicos de ipê amarelo. “Nunca vendemos ipê
algum e nem venderíamos”, diz o procurador-geral de Itaituba, Diego Cajado Neves. “Precisamos muito de madeira para construir pontes e palafitas.”
Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, ex-presidente do Ibama, o instituto que cuida do meio ambiente no país, confirma: “Essa venda por parte da
prefeitura não faz sentido. Se a prefeitura tivesse recebido doação de madeira por parte do Ibama, não poderia ter vendido.” Era a primeira fraude.


A segunda fraude está no transporte da madeira por 500 quilômetros até o distrito de Isol. As guias florestais informam que o transporte foi feito por 68
veículos – constam os números das placas nos documentos. Ao checar as informações, a piauí descobriu que seis dessas placas não são de caminhões
com carrocerias capazes de levar a madeira. Correspondem a dois carros de passeio – um Fiat Palio e um Gol – e quatro motocicletas, que jamais
conseguiriam levar toda aquela carga por 500 quilômetros. Tudo indica que a história do leilão de madeira pela prefeitura de Itaituba foi apenas um
subterfúgio criado por contrabandistas de madeira para “esquentar” ipês extraídos ilegalmente da floresta do Jamanxim.


Segundo a Junta Comercial do Pará, o proprietário da JMS é João Marcos da Silva Alexandre, um rapaz de 28 anos que, ao menos no papel, ingressou
cedo na atividade madeireira: em 2015, com apenas 22 anos, abriu sua primeira empresa do ramo, em Novo Progresso, e construiu um currículo de
infrator. Segundo dados do Ibama, a JMS acumula 300 mil reais de multas por infrações ambientais. Hoje, Alexandre trabalha como pedreiro em Sinop,
no Mato Grosso, com salário aproximado de 1,5 mil reais – pouco para quem, no papel, é um grande atacadista do setor madeireiro. Em depoimento a
um fiscal do órgão ambiental, o “gerente geral” da empresa, Douglas Gaspar Barbosa, disse que Alexandre “emprestou o nome” para a abertura da
firma em troca do pagamento das mensalidades de um curso superior de engenharia civil em Cuiabá, mas não informou quem seria o real dono da
empresa. (Barbosa, que não foi localizado pela reportagem, é filho de um antigo servidor do Ibama demitido em 2006 por corrupção e grilagem de
terras).


Já a sede da Canaã nem fica no distrito de Isol. Em outubro passado, a piauí visitou a região e constatou que seu endereço formal não existe. Embora
todos se conheçam no distrito, nenhum dos dez moradores abordados pela reportagem disse conhecer a serraria nem seu proprietário. Um deles, que
pediu para não ser identificado por medo de retaliação, deu uma pista: existe no distrito a figura do “vendedor de nota”, dono de empresas que só
existem no papel e que servem para “esquentar” madeira extraída ilegalmente da Floresta Nacional do Jamanxim.


O dono formal da Canaã do Norte apresenta os mesmos indícios de ser um testa de ferro no esquema. Com 31 anos, Antonio Carlos Rodrigues de
Oliveira, conhecido por Tonhão, tornou-se um dos maiores grileiros de áreas públicas no Pará. A exemplo de Alexandre, ele também abriu sua
primeira madeireira muito jovem, aos 20 anos de idade, em 2010. Dois anos depois, fiscais do Ibama constataram que a empresa era fantasma, o que lhe

Free download pdf