imediata, estabelecendo a associação de ideias entre o órgão do comando e o
tempo que se encurtava. Além do mais, era um sistema prático: as amputações
podiam ser executadas por simples estudantes e enfermeiros, em salas de
cirurgia improvisadas, com um equipamento precário; se descobertos e presos
pela polícia, que vivia atrás deles, as penas previstas por uma simples mutilação
eram leves, ou, de qualquer maneira, sem comparação com as que lhes seriam
imputadas caso seguissem literalmente as prescrições da teoria. Ainda eram os
tempos em que o assassinato puro e simples dos chefes não seria compreendido
nem pelas autoridades nem pela opinião pública; os executores seriam
condenados como assassinos, o motivo seria procurado em alguma rivalidade ou
vingança.
Em cada organização local e em cada instância do movimento, um grupo de
militantes, diferente do grupo dirigente, e cujos membros mudavam
continuamente, se encarregava das amputações; fixava os prazos, as partes do
corpo, a compra dos antissépticos e, valendo-se do conselho de alguns
especialistas, metia a mão na massa, pessoalmente. Era uma espécie de
comissão de mediadores, que não influía nas decisões políticas, rigidamente
centralizadas pelo comitê diretor.
Quando começaram a faltar dedos de chefes, estudou-se o modo de
introduzir algumas variantes anatômicas. Primeiro, foi a língua que chamou a
atenção; não só se prestava às ablações sucessivas de pequenas fatias ou fibras,
mas, como valor simbólico e mnemônico, era o que havia de mais indicado:
cada cortezinho incidia diretamente na fala e nas virtudes oratórias. Mas as
dificuldades técnicas inerentes à delicadeza do órgão eram superiores ao
previsto. Depois de uma primeira série de intervenções, as línguas foram
deixadas de lado, e eles se concentraram em mutilações mais vistosas embora
menos comprometedoras: orelhas, nariz, alguns dentes. (Quanto ao corte dos
testículos, mesmo sem excluí-lo de vez, foi quase sempre evitado, pois se
prestava a alusões sexuais.)
O caminho é longo. A hora da revolução ainda não soou. Os dirigentes do
movimento continuam a se submeter ao bisturi. Quando chegarão ao poder?
Por mais tarde que seja, serão os primeiros chefes que não frustrarão as
esperanças depositadas neles. Já os vemos desfilarem pelas ruas embandeiradas
no dia da posse: avançando com a perna de pau quem ainda tiver uma perna
inteira; ou empurrando a carriola com um braço quem ainda tiver um braço
para empurrá-la, os rostos encobertos por máscaras de plumas para esconder as
escarificações mais repugnantes, alguns arvorando seu próprio escalpo como
uma relíquia. Nesse momento ficará claro que só naquele mínimo de carne que
lhes resta poderá encarnar-se o poder, se ainda for preciso existir um poder.
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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