Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

ordem do mundo consistia em doar. Doar para que os dons dos deuses
continuassem a nos cumular, para que o sol continuasse a se levantar toda
manhã abeberando-se do sangue que jorra...
EU — O sangue, Montezuma! Não me atrevia a falar-te disso, e és tu que o
mencionas, o sangue dos sacrifícios humanos...
MONTEZUMA — De novo... De novo... Porque vós, ao contrário, vós...
Façamos as contas, façamos as contas das vítimas da vossa civilização e da
nossa...
EU — Não, não, Montezuma, o argumento não se sustenta, sabes que não
estou aqui para justificar Cortés e os seus, decerto não serei eu que minimizarei
os crimes que nossa civilização cometeu e continua a cometer, mas agora é de
vossa civilização que estamos falando! Aqueles jovens deitados sobre o altar, as
facas de pedra que esfacelam o coração, o sangue que esguicha em torno...
MONTEZUMA — E daí? E daí? Homens de todos os tempos e de todos os
lugares se atormentam com um único objetivo: manter o mundo unido para que
ele não desabe. Só a maneira varia. Nas nossas cidades, todas feitas de lagos e
jardins, aquele sacrifício do sangue era necessário, assim como revolver a terra,
como canalizar a água dos rios. Nas vossas cidades, todas feitas de rodas e
gaiolas, a visão do sangue é horrenda, eu sei. Mas quantas vidas mais as vossas
engrenagens trituram!
EU — Concordo, cada cultura deve ser compreendida de dentro, isso
entendi, Montezuma, não estamos mais nos tempos da Conquista que destruiu
os vossos templos e jardins. Sei que, em muitos aspectos, a vossa cultura era um
modelo, mas do mesmo modo gostaria que reconhecêsseis os seus aspectos
monstruosos: que os prisioneiros de guerra tivessem que sofrer aquele destino...
MONTEZUMA — Que necessidade teríamos, então, de fazer as guerras?
Nossas guerras eram gentis e festivas; um jogo, em comparação com as vossas.
Mas um jogo com um objetivo necessário: determinar a quem caberia deitar-se
de costas no altar durante as festas do sacrifício e oferecer o peito à faca de
obsidiana brandida pelo Grande Sacrificador. Essa sorte podia caber a qualquer
um, para o bem de todos. As vossas guerras, para que servem? Os motivos
alegados a cada vez são pretextos banais: as conquistas, o ouro.
EU — Ou então não nos deixarmos dominar pelos outros, não termos o fim
que tivestes com os espanhóis! Se tivésseis matado os homens de Cortés, direi
mais ainda, ouve bem o que digo, Montezuma, se os tivésseis degolado um a um
no altar dos sacrifícios, nesse caso, bem, eu teria compreendido, porque estava
em jogo a vossa sobrevivência como povo, como continuidade histórica...
MONTEZUMA — Vês como te contradizes, homem branco? Matá-los...
Eu queria fazer algo ainda mais importante: pensá-los. Se eu conseguisse pensar
os espanhóis, fazê-los entrar na ordem dos meus pensamentos, assegurar-me da

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