verdadeira essência deles, deuses ou demônios malignos, pouco importa, ou
seres como nós, sujeitos a vontades divinas ou demoníacas, em suma, fazer
deles — de seres inconcebíveis que eram — algo em que o pensamento pudesse
se deter e pudesse influenciar, então, só então, poderia tê-los feito meus aliados
ou meus inimigos, reconhecido-os como perseguidores ou como vítimas.
EU — Para Cortés, ao contrário, estava tudo claro. Esses problemas, ele não
se colocava. Sabia o que queria, o espanhol.
MONTEZUMA — Para ele e para mim era igual. A verdadeira vitória que
ele se esforçava em conseguir contra mim era esta: pensar-me.
EU — E conseguiu?
MONTEZUMA — Não. Pode parecer que tenha feito de mim o que quis:
enganou-me muitas vezes, pilhou meus tesouros, usou minha autoridade como
escudo, enviou-me para morrer apedrejado por meus súditos: mas não conseguiu
ter a mim. O que eu era ficou fora do alcance de seus pensamentos, inatingível.
Sua razão não conseguiu envolver minha razão em sua rede. É por isso que
voltas a me encontrar entre as ruínas do meu império — dos vossos impérios. É
por isso que vens interrogar-me. Depois de mais de quatro séculos de minha
derrota, não tendes mais certeza de haver-me vencido. As verdadeiras guerras e
as verdadeiras pazes não ocorrem na terra, mas entre os deuses.
EU — Montezuma, agora tu me explicaste por que era impossível que vós
vencêsseis. A guerra entre os deuses significa que por trás dos aventureiros de
Cortés havia a ideia do Ocidente, a história que não para, que avança
englobando as civilizações pelas quais a história parou.
MONTEZUMA — Tu também sobrepões os teus deuses aos fatos. Que
coisa é essa que chamas de história? Talvez seja apenas a falta de um equilíbrio.
Ali onde a convivência entre os homens encontra um equilíbrio duradouro, tu
dizes que ali a história parou. Se com a vossa história tivésseis conseguido
tornar-vos menos escravos, não viríeis agora me recriminar por não ter sabido
parar-vos a tempo. Que pretendes de mim? Percebeste que não sabes mais o
que é a vossa história, e te perguntas se ela não podia ter tido outro caminho. E,
segundo tu, esse outro caminho, eu é que deveria ter dado à história. Mas,
como? Pondo-me a pensar com as vossas cabeças? Vós também precisais
classificar sob os nomes de vossos deuses cada coisa nova que transtorna os
vossos horizontes, e nunca tendes certeza de que sejam deuses verdadeiros ou
espíritos malignos, e não tardais a cair prisioneiros deles. As leis das forças
materiais vos parecem claras, mas nem por isso deixastes de esperar que, por
trás delas, se revelassem a vós o desenho do destino do mundo. Sim, é verdade,
naquele início do vosso século XVI talvez a sorte do mundo não estivesse
decidida. A vossa civilização do movimento perpétuo ainda não sabia para onde
estava indo — e nós, a civilização da permanência e do equilíbrio, ainda
podíamos acolhê-la na nossa harmonia.
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
#1