tenha água e não haja se tornado um planeta seco e poeirento como os outros
corpos celestes mais próximos, ou que pelo menos exista água suficiente para
que eu possa recebê-la aqui, no vão de minhas mãos, longe como estou de
qualquer represa e nascente, no coração desta fortaleza de cimento e asfalto.
No verão passado uma grande seca abateu-se sobre a Europa do norte, as
imagens na televisão mostravam campos extensos com uma crosta árida e
rachada, rios outrora caudalosos que descobriam embaraçados seus leitos secos,
bovinos que remexiam os focinhos na lama procurando um alívio para a secura,
filas de gente com ânforas e jarros diante de uma fonte esquálida. Vem-me o
pensamento de que a abundância em que nadei até hoje é precária e ilusória, de
que a água poderia voltar a ser um bem raro, transportado com esforço, eis o
carregador de água com seu barrilzinho a tiracolo, dirigindo seu apelo às janelas
para que os sedentos desçam e comprem um copo de sua preciosa mercadoria.
Se uma tentação de orgulho titânico havia aflorado em mim no momento
em que me apossei do comando das torneiras, bastou um instante para me fazer
considerar injustificável e fátuo o meu delírio de onipotência, e é com aflição e
humildade que espio a chegada da onda que se anuncia descendo pelo cano com
um sussurro abafado. Mas, e se fosse só uma bolha de ar passando pelos
encanamentos vazios? Penso no Saara, que inexoravelmente avança todo ano
alguns centímetros, vejo tremular na escuridão a miragem verdejante de um
oásis, penso nas planícies áridas da Pérsia drenadas por canais subterrâneos até
cidades de cúpulas de faiança azul, percorridas pelas caravanas dos nômades
que todo ano descem do Cáspio para o Golfo Pérsico e acampam sob barracas
pretas onde, acocorada no chão, uma mulher que segura entre os dentes um véu
de cores vivas despeja de um odre de couro água para o chá.
Levanto o rosto para o chuveiro esperando que dali a um segundo os
esguichos chovam sobre minhas pálpebras semicerradas, liberando o meu olhar
sonolento que agora está explorando a peneira de metal cromado salpicada de
furinhos debruados de calcário, e eis que nela me aparece uma paisagem lunar
crivada de crateras calcinadas, não, são os desertos do Irã que estou olhando do
avião, pontilhados de pequenas crateras brancas em fila a distâncias regulares,
que assinalam a viagem da água pelas tubulações em serviço há três mil anos: os
qanat que correm subterrâneos por trechos de cinquenta metros e se
comunicam com a superfície através desses poços onde um homem pode
descer, preso a uma corda, para a manutenção do conduto. Eis que também me
projeto nessas crateras escuras, num horizonte de ponta-cabeça meto-me nos
furos da ducha como nos poços dos qanat, buscando a água que corre invisível
com um sussurro abafado.
Basta-me uma fração de segundo para reencontrar a noção de alto e baixo: é
do alto que a água vai me alcançar, depois de um itinerário irregular na subida.
Os percursos artificiais da água nas civilizações sedentas passam por baixo da
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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