Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

terra ou na superfície, isto é, não se diferenciam muito dos percursos naturais,
enquanto, inversamente, o grande luxo das civilizações pródigas em seiva vital é
o de conseguir que a água vença a força da gravidade, suba para recair depois: e
eis que se multiplicam as fontes com jogos de água e esguichos, os aquedutos
romanos de altas pilastras. Nas arcadas dos aquedutos romanos o imponente
trabalho de alvenaria serve de sustentação à leveza de um fluxo suspenso lá no
alto, ideia que exprime um sublime paradoxo: a monumentalidade mais maciça
e duradoura a serviço do que é fluido e passageiro e inalcançável e diáfano.
Aguço o ouvido para a gaiola de correntes suspensas que me cerca e domina,
para a vibração que se propaga pela floresta de canos. Sinto acima de mim o
céu do campo romano sulcado pelas tubulações no alto das arcadas em ligeiro
declive, e, ainda mais acima, pelas nuvens que, competindo com os aquedutos,
levantam imensas quantidades de água em movimento.
O ponto de chegada do aqueduto é sempre a cidade, a grande esponja feita
para absorver e irrigar, Nínive e seus jardins, Roma e suas termas. Uma cidade
transparente corre em permanência pela espessura compacta das pedras e do
calcário, uma rede de fios de água cinge os muros e as ruas. As metáforas
superficiais definem a cidade como um aglomerado de pedras, diamante
facetado ou carvão fuliginoso, mas cada metrópole pode ser vista também
como uma grande estrutura líquida, um espaço delimitado por linhas de água
verticais e horizontais, uma estratificação de lugares sujeitos a marés e
inundações e ressacas, onde o gênero humano realiza um ideal de vida anfíbia
que corresponde à sua vocação profunda.
Ou talvez a vocação profunda da água seja aquilo que a cidade realiza: subir,
esguichar, correr de baixo para cima. É na dimensão de sua altura que cada
cidade se reconhece: uma Manhattan que ergue suas caixas-d’água no alto dos
arranha-céus, uma Toledo que durante séculos deve se abastecer, barril após
barril, nas correntes do Tejo lá longe, ao fundo, e carregá-los no lombo de
mulas, até que, para gáudio do melancólico Filipe ii, se ponha em movimento,
chiando, el artifício de Juanelo, que transvasa passando por cima do precipício, do
rio até o Alcázar — milagre de curta duração —, o conteúdo dos baldes
oscilantes.
Aqui estou, pois, pronto para receber a água, não como algo que me seja
naturalmente devido, mas como um encontro amoroso cuja liberdade e cuja
felicidade são proporcionais aos obstáculos que ela teve de superar. Para viver
em plena intimidade com a água, os romanos puseram as termas no centro de
sua vida pública; hoje, para nós essa intimidade é o coração da vida privada, aqui
debaixo desta ducha cujos regatos eu vi tantas vezes correr por tua pele, náiade,
nereida, ondina, e é ainda assim que te vejo aparecer e desaparecer no balanço
dos respingos, agora que a água jorra, obedecendo célere ao meu chamado.

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