Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

conseguia achar nada de extraordinário nas coisas tal como eram.
Em compensação, atrás das coisas talvez se escondessem outras coisas, e
estas, estas, sim, podiam me interessar, e até me enchiam de curiosidade. De
vez em quando eu via aparecer e desaparecer alguma coisa, ou um homem, ou
uma mulher, não dava tempo de identificar essas aparições, e de repente eu me
lançava e ia persegui-las. Era o avesso de cada coisa que despertava a minha
curiosidade, o avesso das casas, o avesso dos jardins, o avesso das ruas, o avesso
das cidades, o avesso dos televisores, o avesso das lava-louças, o avesso do mar,
o avesso da lua. Mas, quando eu conseguia alcançar o avesso, compreendia que
o que eu buscava era o avesso do avesso, e até o avesso do avesso do avesso,
não; o avesso do avesso do avesso...
Fulgenzio, o que você está fazendo? Fulgenzio, o que está procurando? Está
procurando alguém, Fulgenzio? Eu não sabia o que responder.
Às vezes, no fundo do espelho, atrás de minha imagem, eu tinha a impressão
de ver uma presença que não me dava tempo de identificar e que de repente se
escondia. Eu procurava observar no espelho, não eu mesmo, mas o mundo atrás
de mim: nada chamava a minha atenção. Eu estava quase desviando o olhar e
eis que, então, a via à espreita, do outro lado do espelho. Flagrava-a sempre de
rabo do olho, ali onde eu menos esperava, mas, assim que tentava fixá-la, ela
desaparecia. Apesar da rapidez de seus movimentos, essa criatura era flutuante
e macia como se nadasse debaixo da água.
Eu largava o espelho e começava a procurar o ponto onde a vira
desaparecer. — Ottilia! Ottilia! — eu chamava, pois gostava desse nome e
pensava que uma moça que me agradasse não podia ter outro nome. — Ottilia!
Onde você se esconde? — Eu sempre tinha a impressão de que ela estava bem
perto, ali na frente, não: ali atrás; não, ali no canto, mas eu sempre chegava um
segundo depois que ela se deslocara. — Ottilia! Ottilia! — Mas se me tivessem
perguntado: quem é Ottilia?, não saberia o que dizer.
Fulgenzio, a gente tem de saber o que quer! Fulgenzio, não se pode ser
sempre tão vago em seus propósitos! Fulgenzio, você tem de se propor um
objetivo a alcançar — uma finalidade — um intento — um alvo — tem de
avançar até a sua meta — deve aprender a lição, deve ser aprovado no
concurso, deve ganhar tanto e poupar tanto!
Eu mirava o ponto de chegada, concentrava minhas forças, tendia minha
vontade, mas o ponto de chegada era de saída, minhas forças eram centrífugas,
minha vontade só tendia a se distender. Eu fazia todo o possível, me empenhava
em estudar japonês, conseguir o diploma de astronauta, vencer o campeonato
de levantamento de peso, juntar um bilhão em moedas de cem liras.
Siga reto o seu caminho, Fulgenzio! E eu tropeçava. Fulgenzio, não se desvie
da linha que se traçou! E eu me embrenhava num zigue-zague, para lá e para
cá. Pule por cima dos obstáculos, meu filho! E os obstáculos caíam em cima de

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