Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

deslumbrados enquanto os pulos frenéticos do controle remoto fazem aparecer
e desaparecer entrevistas com ministros, abraços de amantes, anúncios de
desodorantes, concertos de rock, detidos que escondem o rosto, lançamentos de
foguetes espaciais, tiroteios no Oeste, piruetas de bailarinas, lutas de boxe, quiz
shows, duelos de samurais. Se não paro para assistir a nenhum desses programas é
porque o programa que procuro é outro, e sei que ele existe, tenho certeza de
que não é nenhum desses, e esses são transmitidos apenas para induzir ao erro e
desencorajar quem como eu está convencido de que o programa que conta é
outro. Por isso continuo a passar de canal para canal: não porque minha mente
seja agora incapaz de se concentrar nem mesmo o mínimo necessário para
acompanhar um filme ou um diálogo ou uma corrida de cavalos. Pelo contrário:
minha atenção já está toda projetada em alguma coisa que não posso perder de
jeito nenhum, alguma coisa única que está se produzindo neste momento
enquanto a minha tela ainda está entupida de imagens supérfluas e
intercambiáveis, alguma coisa que já deve ter começado e cujo início eu sem
dúvida perdi, e cujo fim, se não me apressar, também corro o risco de perder.
Meu dedo saltita no botão do controle remoto afastando os invólucros das
aparências vãs tal como os despojos superpostos de uma cebola multicolorida.
Enquanto isso o verdadeiro programa está percorrendo as vias do éter numa
faixa de frequência que não conheço, talvez se perderá no espaço sem que eu
possa interceptá-lo: há uma estação desconhecida que está transmitindo uma
história que me diz respeito, a minha história, a única história que pode me
explicar quem sou eu, de onde venho e para onde estou indo. A única relação que
neste momento posso estabelecer com a minha história é uma relação negativa:
recusar as outras histórias, descartar todas as imagens mentirosas que me são
propostas. Essa pressão nos botões é a ponte que lanço para aquela outra ponte
que se abre em leque no vazio e que meus arpões não conseguem fisgar: duas
pontes descontínuas de impulsos eletromagnéticos que não se juntam e se
perdem na poeira de um mundo estilhaçado.
Foi quando entendi isso que comecei a brandir o controle remoto, não mais
para a tela, mas para fora da janela, para a cidade, suas luzes, os letreiros de
néon, as fachadas dos prédios, os pináculos nos telhados, as pernas das gruas de
bico comprido de ferro, as nuvens. Depois desci pelas ruas com o controle
remoto escondido debaixo do sobretudo, apontado como uma arma. No
processo disseram que eu odiava a cidade, que queria fazê-la desaparecer, que
eu era movido por um impulso de destruição. Não é verdade. Amo, sempre
amei nossa cidade, seus dois rios, as raras pracinhas arborizadas como lagos de
sombra, o miado dilacerante das sirenes das ambulâncias, o vento que pega em
cheio as avenidas, os jornais amassados que voam rés do chão como galinhas
cansadas. Sei que nossa cidade poderia ser a mais feliz do mundo, sei que o é,
não aqui na faixa de ondas em que me movo, mas numa outra faixa de

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