Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

— Dessiè?
— Dessiè também, acho. Quer que eu lhe chame Dessiè, de agora em
diante?
— Não.
— Bem, para voltar àquela vez, com aquela Derna. Eu era jovem e ela,
grande e peluda. Dei o fora. Paguei o que tinha de pagar e dei o fora: minha
impressão era que todas tinham se debruçado no corrimão da escada e estavam
rindo atrás de mim. Bem, isso não foi nada: é que, mal cheguei em casa, aquela
mulher se tornou uma coisa pensada e então parou de me dar medo. Veio-me
um desejo dela, um desejo dela, mortal... É isso: para nós as coisas pensadas são
diferentes das coisas.
— Pois é — disse Mariamirella —, já pensei em todas as coisas possíveis, vivi
centenas de vidas com o pensamento. Casar, ter muitos filhos, abortar, casar
com um rico, casar com um pobre, virar uma mulher de luxo, virar uma mulher
da rua, dançarina, freira, vendedora de castanha assada, diva, deputada,
enfermeira da Cruz Vermelha, campeã. Muitas vidas com todos os detalhes. E
todas com final feliz. Mas na vida verdadeira nunca acontece nada dessas coisas
pensadas. Por isso, toda vez que me ocorre fantasiar, eu me apavoro e tento
enxotar os pensamentos, porque se eu sonhar com uma coisa ela não acontecerá
nunca.
É uma boa moça, Mariamirella; boa moça significa que compreende as
coisas difíceis que digo e logo as torna fáceis. Gostaria de lhe dar um beijo, mas
depois penso que, ao beijá-la, eu pensaria estar beijando o pensamento dela, ela
pensaria ser beijada pelo pensamento de mim, e portanto não faço nada.
— É preciso que a nossa geração reconquiste as coisas, Mariamirella — digo.
— Que pensemos e façamos no mesmo momento. Mas que não façamos sem
pensar. É preciso que entre as coisas pensadas e as coisas não haja mais
diferença. Então seremos felizes.
— Por que é assim? — me pergunta.
— Veja, não para todas as coisas — digo. — Eu, quando criança, vivia numa
grande mansão, entre balaústres altos como voos sobre o mar. E passava os dias
atrás desses balaústres, menino solitário, e cada coisa para mim era um
estranho símbolo, os espaços entre as tâmaras penduradas em cachos nas
hastes, os braços deformados dos cactos, os estranhos sinais no cascalho das
alamedas. Além disso, havia as pessoas grandes, que tinham a missão de lidar
com as coisas, com as coisas de verdade. Eu não devia fazer mais nada a não ser
descobrir novos símbolos, novos significados. Assim permaneci a vida toda, ainda
me movo num castelo de significados, não de coisas, dependo sempre dos
outros, dos “grandes”, daqueles que manejam as coisas. Mas há quem desde
criança tenha trabalhado num torno. Num instrumento que serve para fazer

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