Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

coisas. Que não pode ter um significado diferente das coisas que faz. Eu, quando
olho para uma máquina, vejo-a como se fosse um castelo mágico, imagino
homens minúsculos que circulam entre as rodas dentadas. Um torno. Quem
sabe o que é um torno. Você sabe o que é um torno, Mariamirella?
— Um torno, agora, não sei muito bem, não — diz.
— Deve ser importantíssimo, um torno. Deveriam ensinar todo mundo a
usar um torno, em vez de ensinar a usar um fuzil, que é sempre um objeto
simbólico, sem uma verdadeira finalidade.
— Não me interessa, um torno — diz.
— Está vendo, para você é mais fácil: você tem máquinas de costura para se
salvar, agulhas, sei lá, fogões a gás, até máquinas de escrever. Você tem poucos
mitos dos quais precisa se libertar; para mim todas as coisas são símbolos. Mas
uma coisa é certa: devemos reconquistar as coisas.
Vou acariciando-a, devagarinho.
— Diga, eu sou uma coisa? — diz.
— Urg — digo.
Descobri, acima da axila, uma pequena covinha num ombro, macia, sem
osso embaixo, do tipo das covinhas do rosto. Falo com os lábios em cima da
covinha.
— Ombro igual a rosto — digo. — Não se entende nada.
— Como? — pergunta. Mas está pouco ligando para o que eu digo.
— Corrida como junho — digo, ainda na covinha. Ela não entende o que eu
faço, mas fica feliz e ri. É uma boa moça.
— Mar como chegada — digo, depois tiro a boca da covinha e encosto o
ouvido para escutar o eco. Só se ouve a respiração dela, e, longe e enterrado, o
coração.
— Coração como trem — digo.
Pronto: agora Mariamirella não é mais Mariamirella pensada, é
Mariamirella verdadeira: é Mariamirella! E o que fazemos agora não é mais
uma coisa pensada, é uma coisa verdadeira: o voo por cima dos telhados, e a
casa que se ergue como as palmeiras na janela da minha casa na aldeia, uma
ventania pegou nosso último andar e o transporta pelos céus e pelas fileiras
avermelhadas das telhas.
Na praia da minha aldeia, o mar me viu e faz festa como um cachorro
grande. O mar, gigantesco amigo, com as pequenas mãos brancas que raspam
as pedras, eis que ele pula por cima dos contrafortes dos molhes, estufa a
barriga branca e salta pelos montes, ei-lo chegando alegre como um imenso cão
de patas brancas de redemoinho. Calam-se os grilos, todas as planícies são
invadidas, campos e vinhedos, agora só um camponês levanta o forcado e grita:
eis o mar que desaparece como bebido pela terra. Tchau, mar.

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