Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

fronteira, como em geral se situam as capitais dos reinos mais distantes, ficava
a sua casa. Muitos episódios e cataclismos históricos haviam contribuído para a
sua construção: as paredes baixas de pedras meio desmoronadas eram de uma
antiga cavalariça militar, fechada mais tarde pelo declínio da arma equestre; o
banheiro à turca e uma indelével pichação mural provinham de sua constante
utilização como depósito de armas para a instrução dos cadetes; uma janela de
grades derivava do uso sinistro como prisão a que fora destinada na época da
guerra civil; e para desentocar dali o último pelotão de armíferos ocorrera
aquele incêndio que quase a destruíra; o soalho e os encanamentos eram da
época em que tinha sido acampamento, primeiro de sinistrados, e depois de
refugiados; em seguida, uma prolongada pilhagem invernal de lenha para
queimar, telhas e tijolos a desmantelara de novo; até que lá chegou, com os
colchões e os móveis, despejada do último alojamento, a família de Fiorenzo.
Metade do telhado, enfim, fora substituído por uma velha porta metálica,
entortada numa explosão, encontrada ali nas redondezas. Assim, Fiorenzo, sua
mulher, Ines, e os quatro filhos vivos recuperaram uma casa onde pendurar nas
paredes os retratos dos parentes e os recibos da taxa familiar, e esperaram o
nascimento do quinto filho com alguma esperança de que sobrevivesse.
Se não se podia dizer que o aspecto da casa tivesse melhorado muito desde o
dia em que a família ali se instalou, era porque Fiorenzo, quando foi habitá-la,
parecia mais próximo do espírito de um primitivo que se entoca numa gruta
natural do que de um engenhoso náufrago ou pioneiro, que se esforça em fazer
reviver ao seu redor algo da civilização deixada na terra natal. Em matéria de
civilização Fiorenzo tinha ao seu redor toda a que podia desejar, mas esta lhe
era inimiga e proibida. Depois de ser demitido, tendo logo desaprendido o pouco
do ofício em que de certo modo conseguira se qualificar — o de polidor de canos
de cobre —, ficando com a mão pesada depois de um emprego como servente
de pedreiro que também durou pouco, podado da noite para o dia — com a
família nos braços — do grande movimento da circulação do dinheiro, muito
depressa ele remontara o curso da história: agora, perdida a ideia de que as
coisas necessárias se constroem, se cultivam, se fazem, ele só cuidava do que se
pode colher ou caçar.
A cidade se tornara para Fiorenzo um mundo do qual ele não podia fazer
parte, tal como o caçador não pensa em se tornar floresta, mas apenas em lhe
arrancar uma presa selvagem, uma baga madura, um abrigo contra a chuva.
Assim, para o desempregado a riqueza da cidade estava nos talos de repolho que
ficam nas calçadas das feiras dos bairros quando se desmontam as barracas; no
capim comestível que cresce entre os trilhos dos bondes interurbanos; na
madeira dos bancos públicos que podem ser ceifados, pedaço por pedaço, para
se queimar na estufa; estava nos gatos que de noite, apaixonados, entravam nos
terrenos dominiais e de lá não retornavam. Existia para ele toda uma cidade

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