Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

jogada fora, de segunda ou terceira mão, semienterrada, excrementícia, feita
de sapatos arrebentados, de pontas de cigarro, de varetas de guarda-chuva. E
mesmo lá embaixo, no nível dessas riquezas empoeiradas, ainda se encontra um
mercado, com as demandas e as ofertas, as especulações, os atravessadores.
Fiorenzo vendia garrafas vazias, trapos, peles de gato, e assim ainda conseguia
dar uma bicada fugaz no circuito monetário. A atividade mais cansativa, porém
mais rentável, era a dos descobridores de minas, que escavavam a terra de um
barranco debaixo de uma fábrica procurando ferro-velho no meio do lixo, e às
vezes desenterravam num dia alguns quilos de ferro por trezentas liras. A cidade
tinha temporadas e vindimas irregulares: depois das eleições havia todos os
muros cobertos de cartazes rasgados a serem retirados tira por tira graças à
diligente e furiosa raspagem de uma velha faca; as crianças também ajudavam
e enchiam os sacos com os pedacinhos multicoloridos que eram pesados pelas
avaras romanas dos negociantes de papel velho.
Nessa e em outras expedições acompanhavam Fiorenzo os dois filhos mais
velhos. Tendo crescido naquela vida, não imaginavam outras possíveis, e
corriam pela periferia, selvagens e vorazes, irmãos dos ratos com quem
repartiam comida e jogos. Ines, ao contrário, desenvolvera uma mentalidade de
leoa; não se mexia da toca, lambia o recém-nascido, perdera o hábito doméstico
de arrumar e manter as coisas limpas, jogava-se avidamente sobre o botim que
levavam para casa o marido e os filhos, às vezes ajudava a torná-lo
comercializável descosturando os pedaços da frente do sapato para serem
vendidos aos sapateiros como remendos, ou esfarelando o fumo das guimbas;
mesmo na fome, tornara-se gorda e robusta e, a seu modo, tranquila. O outro
mundo, o das meias e dos cinemas, já não a atraía, com seus grandes cartazes
que agora para ela não representavam mais nada de inteligível, mas apenas
enormes rébus indecifráveis. A fotografia dela com Fiorenzo, vestida de véu e
grinalda no dia do casamento, e de cujo vidro todo dia ela ainda tirava a poeira,
Ines já não sabia se era dela mesma ou de sua bisavó. Os reumatismos levaram-
na a se habituar a ficar sempre deitada mesmo quando não sentia dor. Na cama
em pleno dia naquela casa desconjuntada, com a criança ao lado, olhava o céu
denso e nublado e começava a cantar um velho tango. Assim, Enrico,
aproximando-se do casebre, ouviu cantar: entendia cada vez menos.
Com olho de especialista observou a inclinação do teto ondulado, as quinas
irregulares das paredes jaspeadas pelas marcas do incêndio. Certas ideias, numa
vila à beira-mar, teriam criado um bom efeito. Devia ter isso em mente.
Lembrou-se do discurso que fez um dia, num congresso de urbanismo: — Não é
do palacete mas do casebre, colegas, que sairemos para traçar o nosso
caminho...

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