privados; cada um de nós pode, acomodado tranquilamente em sua poltrona,
relaxado, observar o menor movimento das feições, a vibração irritada das
pálpebras diante da luz dos refletores, o nervoso lamber dos lábios entre uma
palavra e outra... Especialmente nas convulsões da agonia, o rosto, já bem
conhecido por ter sido enquadrado tantas vezes em ocasiões solenes ou festivas,
em poses oratórias ou de parada, exprime tudo de si mesmo: é nesse momento,
mais que em qualquer outro, que o simples cidadão sente o governante como
seu, como algo que lhe pertence para sempre. Mas já antes, durante todos os
meses anteriores, sempre que ele o via aparecer na telinha e avançar na
realização de suas tarefas — por exemplo, inaugurando escavações
arqueológicas, espetando medalhas no peito dos merecedores, ou apenas
descendo escadinhas de aviões e acenando a mão aberta —, já estudava nesse
rosto as possíveis contrações dolorosas, tentava imaginar os espasmos que
precederiam o rigor mortis, distinguir na pronunciação dos discursos e brindes as
inflexões que caracterizariam o estertor extremo. Nisso consiste justamente a
ascendência do homem público sobre a massa: ele é o homem que terá uma
morte pública, o homem a cuja morte temos certeza de assistir, todos juntos, e
que por isso é cercado em vida de nosso interesse ansioso, antecipador. Já não
conseguimos imaginar como eram as coisas antes, no tempo em que os homens
públicos morriam escondidos; hoje achamos graça ao ouvir que eles chamavam
de democracia certas regras daquela época; para nós a democracia só começa a
partir do momento em que temos certeza de que, no dia estabelecido, as
câmeras de televisão enquadrarão a agonia de nossa classe dirigente, de forma
cabal, e de que, no fim do mesmo programa (mas nesse momento muitos
telespectadores desligam o aparelho), haverá a posse da nova equipe, que ficará
no cargo (e em vida) por período equivalente. Sabemos que também em outras
épocas o mecanismo do poder se baseava em assassinatos, em hecatombes ora
lentas ora imprevistas, mas os assassinados eram, salvo raras exceções, pessoas
obscuras, subalternas, mal identificáveis; volta e meia os massacres eram
silenciados, oficialmente ignorados ou justificados com motivos enganosos. Só
essa conquista agora definitiva, só a unificação dos papéis de carrasco e vítima,
num rodízio contínuo, permitiu extinguir dos espíritos todo resquício de ódio e
piedade. O close-up na tensão dos maxilares escancarados, a carótida saltada que
se debate dentro do colarinho engomado, a mão que se levanta contraída e
rasga o peito cintilante de condecorações são contemplados por milhões de
espectadores com sereno recolhimento, como quem observa os movimentos dos
corpos celestes em sua repetição cíclica, espetáculo que, quanto mais estranho,
mais nos tranquiliza.
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Mas, afinal, vocês não querem nos matar desde já?